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Como Ruud Gullit ajudou a combater o racismo e o apartheid

Por Luiz Vendramin Andreassa

Ruud Gullit estava sendo censurado no momento mais vitorioso de sua carreira. A revista France Football não havia permitido que seu discurso de vitória da Bola de Ouro, o prêmio de melhor jogador da Europa, fosse dedicado ao grande ídolo e referência do vencedor. Mesmo assim, punho esquerdo erguido, a dedicatória foi feita e o recado foi passado ao mundo. “Eu também sou apoiador anti-aparthied e dedico meu prêmio de Jogador do Ano da Europa e do Mundo a Nelson Mandela, o líder preso da ANC”.

Muitas pessoas da plateia naquela noite de maio de 1987 provavelmente não sabiam do que Gullit estava falando. Até por isso receberam por escrito o discurso que teriam ouvido caso a revista não interferisse. Naquela época, o que acontecia na África do Sul não era de conhecimento geral. Nem todos sabiam do regime de segregação entre brancos e negros que vigorava no país, o apartheid. Nem sabiam que Nelson Mandela, líder do partido African National Congress e da luta contra o sistema racista, estava preso. As palavras breves do craque do Milan ajudariam a escancarar as injustiças que aconteciam naquela região.

Ruud Gullit não poderia ser acusado de demagogia, ou mesmo de usar aquelas oportunidade para promover sua própria imagem, pois este não foi um ponto isolado em sua vida – sua contribuição ao combate ao racismo foi (e ainda é) imensa. Até porque desde o começo da carreira ele se deparou com a discriminação e às ofensas no futebol. Quando jogava no Feyenoord, um dos clubes mais importantes da Holanda, foi hostilizado durante um amistoso contra o St. Mirren, da primeira divisão da Escócia. “Foi a noite mais triste da minha vida. Os escoceses me vaiaram por causa da minha cor. Até cuspiram em mim”, contou sobre aquela noite de 1983.

Esse tipo de tratamento não fez com que Gullit tivesse vergonha da cor de sua pele nem de sua ligação com o Suriname, país da América do Sul colonizado pela Holanda e terra de origem de seu pai. Pelo contrário: os cabelos no estilo rastafári e o bigode eram marcas tão inconfundíveis quanto os dribles rápidos e precisos e a potência dos chutes com a perna direita. Foi com um desses chutes que o meia marcou um golaço na final da Liga dos Campeões de 1988-1989, o segundo da goleada contra o Steaua Bucareste. Van Basten anotou duas vezes e o próprio Gullit completou a goleada daquele mágico Milan holandês por 4 a 0.

O sucesso também aconteceu na seleção holandesa, onde Ruud foi o primeiro negro a vestir o uniforme laranja. Mais que isso: junto dos colegas de clube Van Basten e Frank Rijkaard, ele conquistou como capitão o único título internacional da Laranja Mecânica, a Eurocopa de 1988.

Os títulos, no entanto, não bastavam para Gullit. E olha que a coleção é invejável: àqueles troféus se somou mais uma Liga dos Campeões, além de títulos das ligas italiana e holandesa, Copas na Itália, Inglaterra e Países Baixos. Faltava a vitória contra o racismo, especialmente contra o apartheid, que impunha a segregação da maioria negra na África do Sul desde 1948. Por conta da cor da pele, essas pessoas eram impedidas de votar, tinham direitos limitados à propriedade, eram oprimidas pelas forças do Estado e acabaram segregadas geograficamente.

A luta, a música e a liberdade

Enquanto o “Tulipa Negra” empilhava troféus, estava preso, na Ilha de Robben, Nelson Mandela, o grande  expoente da luta contra o regime de discriminação à população não-branca, condenado à prisão perpétua por terrorismo. Gullit não se conformava com isso. “Ele [Mandela] foi preso em 1962, que é o mesmo ano em que eu nasci. Era difícil imaginar que alguém estava na prisão quase o tempo todo em que eu estava vivo”, afirmou.

A primeira ação de Ruud em defesa de seus ideais, ainda na juventude, foi bastante pessoal: a troca do sobrenome Dill, de sua mãe, por Gullit, do pai. Na sequência da carreira, a personalidade rebelde e o gênio indomável se tornaram características marcantes: dizia o que vinha à mente, sem medo de expressar suas opiniões, e desafiava as regras do profissionalismo com bebida, cigarro e festas. Eduardo Galeano contou, no clássico livro “El fútbol a sol y sombra”, que o meia não se dava bem com técnicos e dirigentes “por su costumbre de desobedecer y por su porfiada manía de denunciar a la cultura del dinero”.

O próprio Galeano lembra sua atuação, “guitarra en mano”, em concertos contra o apartheid. E veio justamente da música, outra de suas paixões, a homenagem que mudou sua alcunha. A banda holandesa Revelation Time lançou, em 1987, a canção que o rebatizou: de Tulipa Negra para “Capitain Dread”. A letra falava tanto de sua classe dentro das quatro linhas quanto das lutas fora de campo.

He runs like lightning
Thunder when he kicks the ball
Don’t try to stop him
Natty dreadlocks go past them all

He fights against apartheid
And likes to hear reggae music
He fights for equal rights
In Rhodesia, Revelation time!

Captain Dread
Captain dreadlocks at the ball
Captain Dread, natty dread
Bongo natty dreadlocks in full control, yeah

(Ele corre como relâmpago
Trovão quando ele chuta a bola
Não tente pará-lo
Elegantes dreadlocks passa por eles

Ele luta contra o apartheid
Ele gosta de ouvir reggae
Ele luta por direitos iguais
Na Rodésia, Revelation Time!

Capitão Dread
Capitão dreadlocks com a bola
Capitão Dread, elegante dread
Elegantes dreadlocks bongo em controle total, yeah)

No ano seguinte, Gullit se juntou ao grupo para lançar a música “South Africa”. Chegou até a participar de shows tocando baixo, cantando e vestindo uma camisa preta com a frase “Stop apartheid”. Os versos clamavam: “Homens opressores da África do Sul/É melhor voltarem para onde vieram”, além de ordenar “África deve ser livre”.

A atuação do craque neerlandês se somou à pressão internacional, feita por meio da ONU e também por boicotes de outras nações, contra o governo da África do Sul. Durante o final dos anos 80, em pleno processo de globalização, aquela situação inaceitável se tornava cada vez mais insustentável. E veio a mudar realmente em 1989, quando Frederick de Klerk foi eleito presidente. Seu governo revogou várias leis raciais e retomou o diálogo com o African National Congress. Nelson Mandela, ídolo de Gullit, foi libertado após 27 anos da prisão e finalmente, em 1992, um plebiscito só para brancos decidiu, com 69% dos votos, pela revogação do apartheid.

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O resto da história todos conhecem. Mandiba, que chegara a defender a luta violenta contra o antigo regime, saiu da prisão pregando a reconciliação e, na primeira eleição multirracial do país, foi eleito presidente em 1994. Desde então, todos os seus sucessores no cargo foram negros e eleitos pelo mesmo partido, inclusive o atual mandatário, Cyril Ramaphosa. Entretanto, a África do Sul ainda luta contra a desigualdade, a pobreza e os efeitos da política racista que a dominou por décadas.

O merecido reconhecimento

Se Gullit teve de enfrentar o racismo e o julgamento de detratores, o final da carreira e os anos seguintes guardaram momentos especiais. A começar por sua transferência ao Chelsea, em 1995. À época, o time londrino era de tamanho médio e conhecido mais pelo racismo de sua torcida do que pelos títulos, que só viriam a ser frequentes a partir de 2003, quando foi comprado por Roman Abramovich. Ambos os desafios foram superados pelo Capitain Dread. Primeiramente com gols em sua última temporada como jogador profissional, e depois com o título da Copa da Inglaterra, já como técnico da equipe.

“Foi certamente um momento de orgulho quando caminhei no túnel de Wembley à frente do meu time do Chelsea. Me disseram uma semana antes da final que eu era o primeiro técnico estrangeiro a guiar uma equipe a Wembley para uma final de copa doméstica”, relatou. A decisão contra o Middlesbrough acabou em 2 a 0 para os Blues. Diferentemente do que faziam anos atrás, os fanáticos pelo clube londrino aprenderam a comemorar as conquistas de um negro que vestia azul e branco, assim como fariam com Didier Drogba num futuro não muito distante.

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A influência de Gullit se estendeu fora dos gramados. Anos mais tarde, no dia do início da Eurocopa de 2012, ele assinou um artigo no jornal britânico Daily Mail em que comentava os casos de racismo nos países-sede do torneio, Polônia e Ucrânia. “Se um jogador é insultado racialmente, ele deve ter o direito de deixar o campo. Eu gostaria de acreditar que os árbitros mandariam todos para fora, mas os oficiais não estão apoiando os jogadores corretamente, então o indivíduo deve agir. A mensagem que isso passaria: nós não vamos tolerar este abuso”, escreveu, contrariando as ameaças de Michel Platini, então presidente da UEFA, contra os atletas que deixassem o campo por conta própria.

Entretanto, entre todas as conquistas e momentos de protagonismo, nada foi tão especial quanto um evento em 1994. Nele, Gullit encontrou Nelson Mandela e pode realizar o que a France Football não permitira na noite de sua maior premiação individual: entregou ao agora presidente da África do Sul seu troféu da Bola de Ouro. Mandiba agradeceu com palavras calorosas. “Agora, tenho muitos amigos. Mas poucos fariam o que você fez por mim quando eu estava na prisão. Você foi um dos poucos amigos que tive quando estava lá”.

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