haiti brasil seleção brasileira futebol política copa do mundo

As origens do amor dos haitianos pela Seleção e como ele foi usado na política

Por Luiz Vendramin Andreassa

Quando é feita a associação entre o Haiti à Seleção Brasileira, quem acompanha o futebol há alguns anos lembra imediatamente do amistoso realizado em 2004, o Jogo da Paz. Mais do que a partida em si, vencida por 6 a 0 pelo escrete nacional – com gols de Ronaldinho Gaúcho, Nilmar e Roger Flores, camisa 10 naquele dia –, as imagens que marcaram o evento foram as da multidão que saiu às ruas da capital Porto Príncipe para ter a chance de ver os craques brasileiros.

A quantidade de pessoas presentes no trajeto entre o aeroporto e o estádio Sylvio Cator, assim como suas expressões e declarações de amor, mostravam a existência de um sentimento maior do que a simples admiração pela equipe campeã do mundo dois anos antes. “Isso aqui é uma loucura, cara. (Quando) Vocês ganharam a Copa, foi dois dias de feriado aqui”, disse um soldado brasileiro a Ronaldo Fenômeno durante o trajeto.

brasil haiti jogo da paz política 2004 amistoso política futebol seleção brasileira
Jogadores de Brasil e Haiti posaram com faixa que dizia “Justiça social é o verdadeiro nome da paz”, antes do amistoso (créditos: Arquivo CBF)

Para entender essa relação, é preciso conhecer o contexto daquele amistoso. Em fevereiro de 2004, o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide foi deposto por um golpe – algo frequente na história do país, como veremos adiante – e fugiu para a África do Sul. Com a grave situação, a ONU iniciou em junho a intervenção internacional Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), e o Brasil se voluntariou para comandar a atuação militar, além de enviar milhares de soldados. A atitude ia além da solidariedade. Era um movimento estratégico do governo Lula em sua caminhada para ter maior protagonismo internacional. A intenção era fazer isso por meio da integração com os países do sul do globo terrestre, reforçando também a relação com os demais países latino-americanos.

O primeiro-ministro do Haiti, numa espécie de provocação, afirmou que seria melhor se o Brasil mandasse sua seleção de futebol, ao invés de soldados. Lula, um apaixonado pelo esporte, aceitou o desafio. A presença dos astros nacionais complementou a estratégia diplomática e reforçou a intenção de ajudar o país caribenho. Esse fato, juntamente com a presença dos agentes brasileiros de capacete azul, que já atuavam há semanas no local, é tido como uma das explicações para o amor da população pela Seleção. Porém, há indícios de que essa história começou décadas antes.

No documentário “O Dia Em Que o Brasil Esteve Aqui” (2005), de Caíto Ortiz e João Dornelas, Yves Jean-Bart, então presidente da Federação Haitiana de Futebol, afirma que a admiração começou quando seus conterrâneos viram a Seleção campeã do mundo em 1958, cujas imagens só chegaram ao país dois anos depois. Em entrevista ao The New York Times, Jean-Bart complementou a explicação. “Muitos haitianos não têm satisfação em suas vidas. Brasil é uma das coisas boas nelas. Os jogadores brasileiros são negros e vêm das massas. Ronaldo lavou carros na rua quando era garoto”, disse.

haiti brasil seleção brasileira futebol política copa do mundo
Milhares de haitianos foram às ruas de Porto Príncipe recepcionar os jogadores brasileiro no Jogo da Paz, em 2004 (créditos: Arquivo CBF)

O documentário também mostra a agitação de crianças enquanto soldados brasileiros distribuem as tão desejadas camisas amarelas. “Querem muito mais a camiseta do que a comida que eles passam fome”, se surpreende um dos soldados. A citada matéria do The New York Times conta sobre a existência de dezenas de fã clubes do futebol brasileiro e traz a história de Franklin Desir, um motorista de ônibus desempregado membro da associação “Bas Tanga” (“bas” pode ser traduzido como “base” ou “acampamento”, enquanto “tanga” significa “corda” e é usada como gíria para o estilo de jogo brasileiro). “Sob a minha pele, você encontrará Brasil”, declarou.

Além da identificação étnica e da admiração pela virtuose dos jogadores tupiniquins, o site Africa Is a Country aponta as características culturais e religiosas compartilhadas pelos dois países como outra explicação para esse amor. Ambos receberam grande número de escravos da região que hoje corresponde a Benin. O “Vodu Dahomey”, por exemplo, é uma prática religiosa tanto no Haiti quanto em regiões do Nordeste brasileiro. Segundo a matéria, as procissões, vestimentas e ritmos do vodu haitiano e do Candomblé são “quase idênticas”.

Além disso tudo, a matéria assinada por Vlk Sohonle ainda aponta o sucesso da Seleção Brasileira como a demonstração de onde poderia chegar um país que sofreu (e sofre) as chagas da colonização e da escravidão. Só que, por mais que as duas nações tenham tido um passado semelhante, a situação atual é bem diversa.

Um país acostumado aos desastres

O Haiti era uma terra promissora. “Descoberto” por Cristóvão Colombo em 1492, foi batizado Hispania, se tornou colônia da Espanha e, a partir de 1697, da França. Com mão de obra escrava, chegou a produzir 40% do açúcar consumido no mundo e 60% do café usado na Europa. A história começou a mudar em 1794, com a abolição da escravatura. Em 1804, depois de uma revolução sangrenta, foi a vez de o Haiti conquistar a independência, o primeiro de toda América Latina, e o nome que dura até hoje. Além disso, se tornou o primeiro governado por pessoas de ascendência africana. Ambas as conquistas chegaram a deixar assustadas as elites brasileiras da época, que temiam movimentos parecidos por estas terras.

A nação que se colocava na vanguarda da parte latina das Américas, no entanto, passou a sofrer de uma instabilidade que a condenou ao subdesenvolvimento. Em 200 anos, desde a independência até 2004, sofreu 33 golpes de Estado. Acostumou-se a conflitos internos e ditaduras. Uma das piores começou em 1957, quando o médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, foi eleito presidente. Em pouco tempo, ele criou milícias rurais e usou sua guarda pessoal (os tontons macoutes, ou “bichos-papões”, em português) para instalar, em 1961, uma ditadura baseada na violência, na repressão e na eliminação de seus inimigos políticos. Como se não bastasse, o ditador enriqueceu ilicitamente e só fez piorar a fome e a pobreza do país.

brasil haiti política papa doc seleção brasileira futebol françois duvalier
François Duvalier, o Papa Doc, foi o responsável por uma das ditaduras mais violentas e repressivas do Haiti (créditos: Wikipedia Commons)

O reinado de Papa Doc só acabou com sua morte em 1971. No entanto, seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, assumiu o poder e manteve o legado sangrento e corrupto do pai. A diferença é que seu período como ditador durou alguns anos a menos e foi interrompido em 1986 com uma revolta popular. Baby Doc então juntou milhares de dólares e fugiu para a França, onde viveu com a namorada no badalado litoral sul do país. Uma junta militar assumiu o poder e organizou as eleições que, em 1990, elegeram o padre de esquerda Jean-Bertrand Aristide.

Um governo preocupado com as questões sociais poderia ser o primeiro passo para tirar o Haiti de sua situação sofrível. Porém, a sina do país se repetiu e, um ano depois, Atistide foi deposto por um golpe militar. A ONU impôs sanções econômicas e pressionou pela volta do presidente ao seu cargo, o que aconteceu em 1994. Dez conturbados anos depois, veio o novo golpe que o obrigou a se isolar na África. Assim, retornamos ao contexto do Jogo da Paz, com o Haiti sob ocupação internacional. Ainda houve novas tragédias, como o terremoto de 2010 que deixou um saldo de mais de 200 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados. O desastre atrasou a retirada da Minustah, que só viria a acontecer em 2017.

haiti brasil seleção brasileira futebol política copa do mundo
Em 2010, terremoto causos milhares de mortes e atrasou a saída da ocupação da ONU do Haiti (créditos: Marcello Casal Jr/ABr)

Realidades difíceis de mudar

O Haiti de hoje ainda ostenta alguns dos piores indicadores econômicos e sociais do mundo. A renda per capita, medida pela última vez em 2016, era de apenas 739,60 dólares – por ano. Segundo o Banco Mundial, em 2012, mais de 6 milhões de habitantes viviam abaixo da linha da pobreza e 2,5 milhões estavam na faixa da pobreza extrema. O coeficiente Gini de 0.59 (uma escala de 0 a 1, onde quanto maior o número, maior a desigualdade) o coloca como um dos países mais desiguais da América Latina.

Se a situação da população segue calamitosa, permanece vivo o amor pela Seleção Brasileira. Por isso, o governo decidiu anunciar o fim dos subsídios aos combustíveis, e o consequente aumento de 40% em seu preço, na tarde do dia 6 de julho, no momento da partida contra a Bélgica. A intenção era de que o anúncio passasse despercebido pela população, que estaria ligada na disputa válida pelas quartas de final da Copa do Mundo e depois comemoraria a vitória da equipe de Neymar e Cia.

O plano deu errado, e não só porque a Fernandinho (contra) e De Bruyne deram a classificação à Bélgica. Os haitianos perceberam a trapaça e foram às ruas protestar. Diante de um cenário com carros queimados, lojas saqueadas e estradas bloqueadas, o primeiro-ministro Jack Guy Lafontant voltou atrás da decisão, mas não resistiu e deixou o cargo após um voto de desconfiança do Congresso. O presidente Jovenel Moïse agora tem de achar outra alternativa para cortar os subsídios que comem 10% do orçamento do país, medida imposta pelo FMI para a assinatura de um acordo com o país.

Curiosamente, o aumento do preço da gasolina só prejudicaria os 10% haitianos mais ricos, que possuem carro. Faltou capacidade de comunicação ao governo para explicar à população os benefícios de tal medida – inclusive a possibilidade de aumentar os escassos investimentos em serviços públicos e seguridade social. Quem sabe se o presidente e seus assessores tivessem a capacidade professoral e enfadonha de Tite para explicar suas estratégias e conquistar multidões com frases de palestras motivacionais, o resultado teria sido diferente.

2 comentários sobre “As origens do amor dos haitianos pela Seleção e como ele foi usado na política

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s