Por Luiz Vendramin Andreassa
Em seu Dicionário de Política, o cientista político italiano Norberto Bobbio escreveu que totalitarismo é um “modo extremo de fazer política, […] que penetra e mobiliza uma sociedade inteira ao mesmo tempo que lhe destrói a autonomia”. Uma das duas experiências de Estado totalitário apontadas pelo livro é a União Soviética de Josef Stalin, que a comandou entre 1922 e 1953, ano de sua morte. Nela, assim como na Alemanha nazista, praticamente todas as áreas da sociedade eram usadas pelo governo para obter controle sobre as pessoas, e o futebol, como esporte popular no mundo todo, não ficou de fora disso.
Stalin não foi um grande fã de futebol, diferentemente de seu filho mais velho, Vasili Djugashvili. Porém, o Estado soviético, sob seu comando, o usou para mostrar sua capacidade de controle e assumir as glórias do sucesso dentro de campo, além representar o bloco em competições internacionais e reforçar o sentimento nacionalista da população, principalmente com a necessidade de unir os povos dos diferentes países que o integravam. Mais que isso: o Estado se infiltrou em clubes de Moscou para usá-los como instrumentos políticos e símbolos de suas instituições.
O Lokomotiv, por exemplo, era bancado pela companhia ferroviária estatal. O Zenit representava a pujança da indústria na URSS, que cresceu exponencialmente na primeira metade do século XX. Já o CSKA e o Dynamo Moscou eram ligados às forças militares e repressivas do governo. Essas relações garantiram vantagens competitivas a esses clubes e até hoje ressoam em seus bastidores. Vamos conhecer essas histórias mais a fundo.
CSKA, o time do Exército Vermelho
O CSKA Moscou, conhecido dos brasileiros como o time onde Vagner Love jogou por seis temporadas, nasceu como Sociedade de Esportes Esquis Amadores, em 1911, fundada por membros do exército imperial da Rússia. A princípio, o clube praticava somente o esqui, mas logo adotou outras modalidades, entre elas o futebol. Por conta da revolução bolchevique de 1917, as atividades foram suspensas por um breve período de tempo, até que fossem retomadas para os membros do Exército Vermelho.
A Sociedade passou a se chamar CDKA, abreviação de Casa Central do Exército Vermelho, e a ser um órgão do governo. Essa nova condição conferia vantagens futebolísticas: quando um jovem talento despontava na União Soviética, ele era recrutado para o Exército e repassado ao clube. Além disso, seus principais craques foram liberados de combater na Segunda Guerra Mundial, o que lhe conferiu ainda mais vantagem diante de clubes não ligados ao governo. Essa ajuda tinha um motivo: sucesso da equipe dentro de campo era oportunidade para uma das mais importantes instituições do bloco mostrar a força e a capacidade física de seus homens.

A época de ouro do CDKA aconteceu entre 1945 e 1951, quando conquistou cinco vezes a Liga Soviética e três vezes a Copa doméstica. Durante todo o período, o elenco foi treinado por Boris Arkadyev, técnico de grande destaque na URSS, que ajudou a revolucionar o futebol praticado na região ao tirar lições daquele jogado na Europa, baseado no famoso W-M – três zagueiros e dois meias, formando o W, e dois meias e três atacante, as pontas que desenham o M. O sucesso levou o treinador comando da seleção, para onde levou vários de seus comandados no time do exército, como Nyrkov, Vsevolod Bobrov (astro também no hóquei) and Nikolayev.
Só que, ao mesmo tempo em que essa relação entre clube e Estado rendia benefícios, também cobrava seu preço. Nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, a seleção soviética venceu a a Bulgária no confronto preliminar, e se credenciou para enfrentar a Iugoslávia, o país do rival político Josip Broz Tito, pelas oitavas de final. O placar marcava 5 a 1 para os iugoslavos a 30 minutos do fim, mas, com três gols de Bobrov, os soviéticos buscaram o empate por 5 a 5. Apesar do feito milagroso, a partida de replay confirmou a superioridade dos iugoslavos, que venceram por 3 a 1. Josef Stalin não perdoou o fracasso. Arkadyev perdeu seu título de mestre em esportes e o governo retirou a ajuda ao CDKA, que perdeu sua fonte de sucesso e ficou sem competir até a morte do primeiro-ministro em 1953.
O clube nunca mais foi o mesmo depois da retirada do patrocínio estatal. Até 1991, quando conquistou o recém-formado Campeonato Russo, só houve mais dois títulos de relevância: da liga soviética em 1970 e da copa em 1955. Em 1960, o seu nome foi trocado para CSKA (Esporte Clube Central do Exército). Com a dissolução da URSS, o comando do CSKA passou a ser privado, mas o Ministério da Defesa da Rússia segue como um de seus acionistas. Hoje em dia, os títulos voltaram a ser frequentes: desde 2002, foram levantados seis troféus do Campeonato Russo, sete da Copa da Rússia e um da Copa da UEFA, hoje Liga Europa, em 2004-2005, com direito a gol de Vagner Love fechando a vitória por 3 a 1 sobre o Sporting-POR.
Dynamo, o time do serviço secreto
Como o CSKA, o Dynamo Moscou também nasceu como um clube esportivo sem grandes pretensões, fundado nos arredores da capital do Império Russo em 1887, para depois ser cooptado pelo governo comunista. O MVD, Ministério dos Assuntos Internos, passou a controlá-lo em 1923 e o associou à Tcheka, a política secreta soviética criada por um decreto de Vladimir Lenin. Foi também quando adotou o nome usado até hoje, que significa “poder em movimento” em grego. Curiosamente, “Dynamo” e suas variações foram usadas como nome para diversos outros times associados à polícia em países comunistas, como Alemanha Oriental, Iugoslávia, Romênia e Tchecoslováquia.

Posteriormente, o clube passou a ser controlado por Lavrentiy Pavlovich Beria, chefe da NKVD, organização que sucedeu a Tcheka e que no futuro se tornaria a famosa KGB. Como chefe da polícia por 15 anos, Beria é tido como responsável por milhões de assassinatos e pela massificação dos campos de concentração. “A vida humana não tinha valor para ele”, contou o historiador russo Antonov-Ovseyenko ao jornal britânico The Telegraph em 2003, cinquenta anos após a execução do chefe da polícia soviética. No futebol, rumores diziam que ele teria sido o responsável por convencer Stalin a retirar o apoio do Exército Vermelho ao CDKA depois do fracasso nas Olimpíadas de 1952.
Os primeiros títulos do Dynamo foram conquistados na década de 30: um bicampeonato soviético em 1936 e 1937 e uma Copa da União Soviética em 1937. Já o período de maior sucesso aconteceu entre 1949 e 1959, quando a equipe venceu a liga por cinco vez, sendo quatro delas com a ajuda do maior ícone do clube, o mítico goleiro Lev Yashin. Qualquer matéria é pouco para falar da importância do Aranha Negra, porém vale lembrar sua importância para a posição, a qual ele revolucionou ao ser mais participativo nas partidas, antevendo as jogadas para sair com um soco para cortar cruzamentos ou mesmo com os pés, como um líbero, para tirar a bola dos atacantes. Além disso, chegou a defender 150 pênaltis e alcançou a marca de 270 jogos sem levar gols. Por esses e outros feitos, recebeu o prêmio de melhor jogador europeu em 1963, sendo até hoje o único goleiro a receber esta homenagem.

Apesar de ser o único clube em que Yashin jogou, o Dynamo, por sua ligação com a polícia secreta, sempre foi um dos grandes de Moscou com menor torcida. E, nos últimos anos, tem vivido crises no campo e nas finanças. Desde o fim da URSS, só conquistou uma Copa da Rússia, na temporada 1994-1995, e chegou a ser rebaixado em 2016, voltando um ano depois à primeira divisão. Há quem acredite que a má fase seja uma forma de punição aos crimes de Beria e de Feliks Dzerzhinsky, um dos criadores da Tcheka e também assassino em massa.
Spartak, o time do povo
Como em outras áreas, no futebol havia pouco espaço para iniciativas da sociedade civil na União Soviética. Mesmo assim, trabalhadores e membros de sindicatos formaram, em 1922, o Círculo de Esporte Moscou, clube que atuava em várias modalidades. Por não ter ligações com o governo, a sociedade atraiu a atenção da população e recebeu a alcunha de Time do Povo. Em 1935, assumiu o sugestivo nome Spartak, referência a Espártaco, líder da revolta de escravos na Roma Antiga conhecida como Terceira Guerra Servil, que aconteceu entre 73 e 71 a.C.
O posicionamento não ficava apenas no nome. No meio do Grande Expurgo de Stalin, período de perseguições do governo contra opositores políticos, marcado pelo medo e pelo terror, torcer para o Spartak era quase uma forma velada de resistência. Ainda mais tendo como líder dentro e fora de campo Nikolai Starostin, um dos grandes jogadores da época, apontado como responsável pela mudança de nome. Junto de seus três irmãos, ele defendia a liberdade de expressão e o jogo justo como valores do clube, hoje chamado pelo pomposo nome fair play. Tanto que Igor Netto, um dos ídolos da agremiação, numa demonstração de extrema honestidade, avisou ao árbitro da partida entre URSS e Chile na Copa do Mundo de 1962 que um gol da sua equipe não acontecera, pois a bola tinha furado as redes e entrado pelo lado de fora. O jogo, válido pelas quartas de final, terminou com vitória chilena por 2 a 1.

Por conta de sua popularidade, ligação com o povo e estilo de jogo mais solto e inovador, o Spartak despertou a inveja de CSKA e Dynamo. A rixa com o segundo foi alimentada inclusive por uma disputa pessoal. Lavrentiy Pavlovich Beria, o chefe da polícia secreta que comandava o Dynamo, chegou a enfrentar Nikolai Starostin em campo durante a juventude em sua terra natal, a Geórgia, e o tinha como desafeto, além de adversário nos certames soviéticos. Esse sentimento levou Beria a forjar uma acusação contra os irmãos Starostin por planejar matar Stalin, o que os condenou à prisão nos Gulags, os campos de concentração da URSS. Nikolai, porém, saiu de lá dez anos depois e seguiu se dedicando ao futebol.
Nem a desvantagem perante aos adversários favorecidos pelo Estado, nem a Segunda Guerra Mundial (da qual seus jogadores não escaparam, inclusive com a morte de três deles em batalha), e nem mesmo as conspirações de Beria impediram o Spartak de ser um time vencedor. Entre 1936 e 1989, o clube conquistou doze vezes a Liga Soviética, além de nove títulos da Copa. O sucesso se repetiu no Campeonato Russo, especialmente nos anos 1990, quando foi campeão nada menos que nove vezes. A década seguinte foi bem menos vitoriosa, mas o título russo na temporada 2016-2017 recolocou o clube no topo do país.
Entretanto, as conquistas em campo talvez sejam até menos importante que o status conquistado pelo Spartak na União Soviética. Com sua origem e seu jeito de encarar o futebol, ele conseguiu representar os operários, justamente a classe menos privilegiada, num período no qual o Estado, agindo em nome dos trabalhadores, colocava-os na parte mais baixa da escala social. Um clube que nasceu como Time do Povo e fez por merecer, ao longo de sua história, a nobre alcunha.
Um comentário sobre “Como a URSS cooptou os clubes de Moscou para exaltar suas instituições”