Por Luiz Vendramin Andreassa
Sempre que uma Copa do Mundo se aproxima, alguns brasileiros gostam de reviver uma tradição: acusar o futebol de ser instrumento de “alienação”, uma forma de distrair as massas daquilo que realmente importa – a política, a corrupção ou o que for. A situação seria como uma paródia da canção “Vai passar”, de Chico Buarque: “Torcia / A nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações”.
Essa crítica, em meados do século passado, era feita pela esquerda que via no rolar da bola o movimento de hipnose do proletariado; atualmente, é mais comum na direita, aquela mais reacionária, das críticas à política nacional e das notícias duvidosas de WhatsApp. Para outros, o futebol é o despertador da agressividade humana, dando motivos para torcedores se renderem aos instintos violentos e partirem para o confronto físico em nome de clubes e torcidas organizadas.
Agora, também há o time dos que pensam justamente o contrário, e esse plantel conta com um craque do pensamento brasileiro, o antropólogo Roberto DaMatta. Em seu trabalho, o futebol aparece como uma verdadeira instituição nacional, com efeitos positivos sobre a própria formação da sociedade nacional e da sua relação com o Estado. Na coletânea de artigos e ensaios “A bola corre mais que os homens”, DaMatta analisa os significados e os efeitos do esporte criado na Inglaterra para justificar sua visão positiva.

O ponto central é o papel “civilizatório” do futebol no Brasil do início do século XX. Por estranho que essa ideia soe para algumas pessoas, especialmente aquelas que o associam à violência das torcidas, ao aprender a jogar bola, os brasileiros teriam tido também lições de democracia e igualdade. Isso porque, durante uma partida, jogadores, torcida, árbitros e todos os envolvidos “estão voluntária e prazerosamente submetidos, num grau jamais atingido na ‘vida real’, às ‘regras do jogo’”. “Em caso de exagero ou conflito, todos estão também subordinados a uma justiça especial”, completa DaMatta.
Esses conceitos modernos de igualdade e obediência perante às regras, de direitos iguais para qualquer um participar do jogo (seja qual for a etnia ou a classe social) e de fair play (os derrotados aceitam a derrota e se esforçam para melhorar nas próximas disputas, como nas eleições), trazidos pelo futebol, se chocaram com as características da nossa sociedade. Por aqui, os valores e costumes eram outros: a herança portuguesa da hierarquia social, da proximidade com o Estado (ou o rei) para obtenção de privilégios, da ascensão por outros modos que não a meritocracia e o trabalho. Por tudo isso, para o autor, o “jogo civiliza e ordena”.
“Com o futebol, o Brasil não nos enche de vergonha – como ocorre no discurso dos políticos –, mas de orgulho, carinho e de amor”
Ao ensinar e adaptar o Brasil a essas ideias constitutivas da civilização ocidental, o futebol (e principalmente a Seleção Brasileira) fez o papel de mediador entre a sociedade civil (e sua cultura) e os símbolos nacionais, como o hino e a bandeira, e o Estado. Nas palavras de Roberto DaMatta, ele é um dos “instrumentos mais efetivos da difícil mediação entre sociedade e país, povo e governo, regras impessoais válidas para todos os cidadãos e teias de relações pessoas que distinguem as pessoas umas das outras numa complexa hierarquia”.
Além disso, o antropólogo rechaça a característica “alienante” do esporte mais popular do país. Ao invés de distrair a massa e desviar sua visão dos grilhões que a oprimem, ele, por meio da “experiência com a vitória, com a excelência, com o esforço e o sacrifício coletivos, com entregar-se de corpo e alma a uma camisa-causa, permite voltar ao trabalho com novas disposições”. O sucesso poderia ser, então, transferido do campo e das arquibancadas para outras partes da vida. “Se sou vitorioso na bola, por que não ser igualmente excelente no estudo, na arte e na minha atividade profissional? Se o Brasil é penta na pelota, por que não transformá-lo num campeão de justiça social e de distribuição de renda?”, questiona.
Aprendendo a amar a nação
Todos conhecemos, mesmo que superficialmente, o significado de “complexo de vira-lata”. O dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues chamou assim a mania dos brasileiros de se colocar em inferioridade na comparação com os estrangeiros do mundo desenvolvido, um sentimento presente em várias áreas da vida social, da política à economia e ao futebol. Segundo ele, o ponto máximo desse “narcisismo às avessas” aconteceu na derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950. O escrete canarinho, mesmo superior tecnicamente, sucumbiu quando Obdulio Varela, o capitão celeste, “nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos”, numa explicação psicológica para a maior tragédia do futebol brasileiro – pelo menos até 8 de julho de 2014.
Por mais dor que tenha causado a remontada uruguaia em pleno Maracanã, a Seleção Brasileira tratou de mostrar, oito anos depois, a possibilidade de encontrar, no próprio futebol, o remédio para o viralatismo. A conquista da Copa de 1958 sobre a Suécia seria, para Nelson Rodrigues, a quebra definitiva da impressão depreciativa do brasileiro sobre si mesmo. Seria a prova de que não devíamos nada ao resto do mundo e poderíamos conquistar a excelência no esporte e (por que não?) também em outras áreas. Roberto DaMatta tem uma opinião parecida sobre o efeito daquele título mundial e do subsequente bicampeonato sobre nossa psique coletiva.
No artigo “O futebol e as cidadanias brasileiras”, ele argumenta que, “com o futebol, o Brasil não nos enche de vergonha – como ocorre no discurso dos políticos –, mas de orgulho, carinho e de amor”. Esse componente emocional nos ajuda a valorizar nossas qualidades e a enxergar nossa capacidade de alcançar a excelência. E é também uma prova de que é possível vencermos pelo drible, pela ginga e pelo improviso unidos à organização coletiva e à estratégia. A histórica Seleção de 1970 talvez seja o maior exemplo desse casamento de características diversas.

Trata-se de algo diferente do nacionalismo exagerado, que seria o oposto do nosso “narcisismo às avessas”. É o sentimento de orgulho em relação àquilo que se pode fazer enquanto nação, pois é impossível um povo “transformar-se sem amar a si mesmo ou ao menos confiar na sua capacidade de mudar”. E, para além do selecionado nacional, o futebol dos clubes também tem esse efeito. Segundo DaMatta, através dele “as massas brasileiras podem experimentar vencer com seus times favoritos. […] Essa vitória que a massa, perpetuamente iludida por governantes desonestos, efetivamente desconhece no campo da educação, da saúde e, acima de tudo, da política”.
O futebol, o Brasil e o capitalismo
Além de nos ensinar sobre democracia e igualdade e de nos fazer amar o país, o futebol também tem, assim como o próprio Brasil, uma relação paradoxal com o capitalismo. Assim como os outros esportes, ele rompe com a lógica do utilitarismo da sociedade ocidental, “esse utilitarismo que deve ser o fim das nossas vidas e que entroniza a ideia de progresso”, um “traço básico da ideologia burguesa”.
Como um bom antropólogo, Roberto DaMatta foca em seus artigos o aspecto simbólico e ritualístico da prática esportiva. O gasto de energia de energia e dinheiro, por parte dos torcedores, com algo que não traz bens materiais exemplifica “uma atividade paradoxal porque não é produtiva no sentido de transformar a natureza e produzir ‘riqueza’, estando balizada pela mudança de foco e pelo relaxamento”. O esporte e seus rituais (hinos, cantos, gritos, uniformes), inúteis do ponto de vista utilitarista, são a própria definição de lazer.
“[…] O esporte afirma valores capitalistas básicos, como o individualismo […] e o igualitarismo […], o que, como disse, ajuda na socialização de uma justiça burguesa universalista”
Por outro lado, ele enaltece valores capitalistas, como a já citada meritocracia, ou seja, a crença de que qualquer indivíduo pode chegar ao sucesso em sua área, contanto que se esforce o bastante para isso. O esforço e a persistência seriam, nesse sentido, mais determinantes que a classe social e outros fatores. Relacionado a isso está o individualismo, como diz o autor em “Antropologia do óbvio: um ensaio em torno do significado social do futebol brasileiro”: “cada um de nós tem o direito de escolher um clube, time ou herói esportivo e, mais que isso, de tentar ser um atleta”.
Outro valor burguês presente no futebol e nos esportes em geral é o igualitarismo, a ideia de igualdade perante à lei e às regras, apesar da manutenção da individualidade. Nas disputas, aconteçam elas em estádios, pistas ou urnas, “os adversários têm que ter as mesmas oportunidades e devem ser tratados com lisura e respeito”. A democracia, assim como a justiça universalista moderna e a noção de direitos humanos, é uma criação da burguesia.
No Brasil, a relação com os valores e ideias burgueses também acontece de forma paradoxal. É só pensar na forma como encaramos o trabalho. Segundo DaMatta, o vemos como algo próximo da origem latina da palavra: tripalium, um instrumento de tortura usado pelo Império Romano. Trabalhar ficou associado, na Idade Média, a algo torturante, extenuante, causador de sofrimento, na melhor das hipóteses uma obrigação e um sacrifício necessários à sobrevivência. Mantendo essa ideia, preferiríamos as festas, as celebrações e as relações interpessoais em detrimento da atividade da criação de riquezas.
Mas essa relação não se limita a essa suposta “preguiça”. A contradição acontece na história da conquista de cidadania por parte do povo brasileiro. Um sociólogo britânico chamado Thomas Humphrey Marshall tem a seguinte interpretação da obtenção da cidadania no mundo ocidental. No século XVIII, surgiram os direitos civis – aqueles associados à liberdade individual e à igualdade perante à justiça e à lei que garantem essa liberdade. No século seguinte, foi a vez dos direitos políticos: a possibilidade escolher os governantes por meio do voto e de participar no exercício do poder. Por fim, o século XX foi o da conquista dos chamados direitos sociais, mais especificamente o direito de alimentação, educação, saúde, bem-estar e trabalho digno.
Essas “três ondas” de conquistas da cidadania aconteceram numa ordem diferente no Brasil. Por aqui, primeiro vieram os direitos sociais, especialmente na forma da legislação trabalhista criada na Era Vargas. O Estado passou a mediar as relações de trabalho para equilibrar as forças entre trabalhadores e empresas. Para isso, incentivou a sindicalização, estipulou o limite de oito horas diárias de expediente e fez melhorias na aposentadoria. Ao mesmo tempo, as outras três partes da cidadania eram ignoradas – vide, por exemplo, a baixa participação política na época. Com a redemocratização e a Constituição de 1988, o Brasil deu passos importantes na obtenção de direitos políticos, com a volta das eleições diretas para presidente, e civis, com a volta da liberdade de expressão, entre outros.
Ao obter os direitos trabalhistas antes dos outros, a cidadania, para o brasileiro, ficou associada ao trabalho. Só teria direitos e seria digno de respeito quem trabalhasse, como se a carteira de trabalho fosse um título de cidadão. Não à toa aparece tanto na cultura brasileira a oposição entre trabalhador e vagabundo, como na música “Senhor Delegado”, de Ernani Silva e Antoninho Lopes. Nela, ao ser abordado pela polícia, o indivíduo tenta provar sua inocência argumentando: “Os meus documentos / Eu esqueci mas for por distração (comigo não) / Sou rapaz honesto / Trabalhador, veja só minha mão (sou tecelão)”. E também não à toa policiais e seus simpatizantes chamam criminosos de “vagabundos”, como se a “vagabundagem”, o não trabalhar, fosse um comprovante de desonestidade.
As duas concepções do labor – por um lado um sacrifício sofrível, por outro um garantidor de respeito e cidadania – são manifestações do modo paradoxal como encaramos o assunto no Brasil. Uma relação exemplificada de um jeito cômico numa conversa na seção de comentários do portal G1.
Mas é assim mesmo?
Mesmo com toda a argumentação a favor dessa visão positiva do futebol no Brasil, há quem possa discordar da avaliação de Roberto DaMatta. Existem motivos pra isso: como pode o futebol ser “civilizatório” se, hoje em dia, vemos tanta violência cometida em nome da rivalidade entre torcedores? Ele não desperta paixões e violências nas pessoas? É preciso lembrar que “Antropologia do óbvio”, o principal texto do livro, foi escrito em 1994, quando os confrontos entre torcidas organizadas já existiam, mas pareciam menos evidentes que hoje. Além disso, é possível uma nova prática ter efeitos positivos ao ser adotada por uma sociedade e, com o passar do tempo, se tornar prejudicial.
É preciso lembrar também que essas interações sociais são complexas. Não é possível simplificar avaliações a ponto de separá-las entre completamente “boas” e inteiramente “ruins”. O futebol pode muito bem dar lições de igualdade e respeito às regras e, ao mesmo tempo, ser o campo onde os fanáticos expressam sua violência e seu preconceito, como tantas vezes vemos. Também é possível ser uma expressão democrática e valorizar um país enquanto distrai alguns indivíduos de outros aspectos da vida. Tudo depende de quem, como e quando se recebe a influência de um jogo com tamanha carga de paixão e competitividade.
Por isso, “A bola corre mais que os homens” é um excelente contraponto, com citações históricas e análises de um dos principais intelectuais do país, àqueles que querem simplifica-lo com a tarja de “alienação”. Roberto DaMatta mostra como é importante ressaltar as qualidades desde esporte que conquistou – e foi conquistados pelos – brasileiros. Pois, como diz o antropólogo, “Muito antes […] da redescoberta da democracia e da estabilidade monetária, […] o futebol, já exorcizava a nossa autoflagelação, transformando-a numa deslavada e necessária admiração por nós mesmos. Esse amor que grita ‘gooool’ e nos obriga a enxergar o quanto valemos a pena”.

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