Da seleção aos clubes, a relação do futebol argentino com a memória da ditadura

Por Luiz Vendramin Andreassa

No dia 24 de março, os clubes argentinos interromperam sua programação normal nas redes sociais para abordar um tema diferente. As principais agremiações fizeram posts tratando do chamado Dia Nacional pela Verdade e a Justiça, data que marca o golpe de Estado realizado em 1976 que instaurou uma ditadura militar no país. Boca Juniors, River Plate, Independiente, San Lorenzo, entre outros, usaram as palavras “memória”, “verdade”, “justiça” e “nunca mais” para expressar o sentimento em relação a um dos mais obscuros períodos da história do país.

A atitude pode soar estranha para os torcedores brasileiros, acostumados a ver seus clubes mantendo distância da política, mesmo na hora de defender valores como a democracia e os direitos humanos. No país vizinho, no entanto, essa é uma prática muito mais comum. Um exemplo é a campanha iniciada pela Comissão de Direitos do Banfield em fevereiro deste ano para restituir a condição de sócios a seus torcedores desaparecidos na ditadura. Ou, então, o apoio do Atlanta, em 2018, às manifestações das Madres e Abuelas de La Plaza de Mayo, associações de mães e avós de pessoas assassinadas pela ditadura. Tamanha diferença de atitude entre os times dos países vizinhos pode ser explicada pela relação distinta que nossos vizinhos têm com a memória de seus tempos de chumbo.

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Jorge Videla (centro) foi um dos principais nomes do golpe militar e comandou a Argentina na maior parte da ditadura (créditos: WikiMedia Commons)

Quando uma junta militar comandada por Jorge Rafael Videla aproveitou a crise econômica e política para destituir a presidente Isabelita Perón, boa parte da população e da imprensa, tal como aconteceu no Brasil, viu a chance de estabilizar o país e evitar uma suposta ameaça comunista. Mal imaginavam que estavam entrando na mais sangrenta das ditaduras militares que pipocaram na América Latina na segunda metade do século XX. A perseguição a opositores começou a pretexto do combate a guerrilhas esquerdistas, apesar de elas já estarem quase desaparecidas por conta da ação do esquadrão da morte Triple A, nos anos anteriores. Com o passar do tempo, a violência se escancarou e fez vítimas em toda a sociedade. Em apenas sete anos, oito mil civis desapareceram (ou seja, foram executados ou simplesmente sumiram para nunca mais voltar), de acordo com a Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas (Conadeb). Segundo outras fontes, esse número seria, na verdade, mais do triplo: cerca de 30 mil.

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O governo se apoiava em um plano chamado Processo de Reorganização Nacional, cujo objetivo era eliminar qualquer foco de atuação de grupos marxistas e peronistas, considerados uma ameaça aos valores ocidentais. Os militantes seriam “rebeldes patológicos” e “irrecuperáveis”, por isso a necessidade de, mais do que travar a disputa de ideias, realizar uma guerra física. Não bastava, entretanto, tirar de ação essas pessoas, mas seria preciso fazer o mesmo com seus familiares, inclusive dando seus filhos menores para a adoção por militares. Era a Guerra Sucia, ou Guerra Suja, em seu ponto mais terrível: execuções sumárias, tortura e arremessos de inimigos de aviões em pleno voo viraram ferramentas políticas.

Uma Copa do Mundo sob suspeita

Tamanho terror, para se sustentar, precisava estar longe do foco da população e, principalmente, da comunidade internacional. Para isso a Copa do Mundo de 1978 veio muito a calhar. Sediar um evento desse porte poderia unir o povo em torno de um símbolo da nação (a seleção) e mostrar ao mundo apenas o que os governantes quisessem que fosse visto. E aí entramos no episódio já conhecido, mas impossível de não ser citado em uma matéria como esta, da atuação dos militares no andamento do torneio – influenciando inclusive seu resultado final, acreditam muitos.

Oito equipes se classificaram na primeira fase e, na segunda, o regulamento os dividiu em duas chaves de quatro times. O primeiro colocado de cada chave iria para a final, enquanto os segundos duelariam pelo terceiro lugar geral. No Grupo B, o Brasil fez boa campanha, vencendo o Peru por 3 a 0, empatando com a Argentina sem gols e batendo o Peru por 3 a 1. Na última partida, a seleção da casa precisava vencer os peruanos para igualar o número de pontos dos brasileiros e ainda obter uma diferença de quatro gols para ultrapassá-los no critério de desempate. A missão parecia dificílima, especialmente diante da boa campanha que os rojiblancos faziam no torneio, com direito ao primeiro lugar na primeira fase, à frente da fortíssima Holanda, apesar das duas derrotas naquele quadrangular decisivo.

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Um conjunto de acontecimentos, alguns verdadeiros, outros ainda obscuros, fomentam até hoje a hipótese de que o time peruano entregou o resultado naquela noite de 21 de junho por pressão direta do governo militar. Depois de ir para o intervalo perdendo por 2 a 0, a equipe voltou totalmente descoordenada, com sua defesa dando uma facilidade anormal para os atacantes argentinos. O resultado foram mais quatro gols, decretando a goleada por 6 a 0 e a classificação para a grande final, onde venceriam a Holanda. Quarenta anos depois, José Velásquez, meio-campo do Peru, acusou seis ex-companheiros de terem entregado o jogo para a Argentina. Segundo ele, Jorge Videla e Henry Kissinger, secretário de estado dos Estados Unidos, visitaram o vestiário de sua equipe antes da partida para desejar boa sorte. O recado teria sido passado (ou reforçado) nesse momento, fruto também de um suposto acordo entre os presidentes argentino e peruano, na época também sob uma ditadura militar.

O que não se discute é o uso daquela conquista para incentivar um sentimento nacionalista na sociedade argentina ao mesmo tempo em que se tirava a atenção das torturas e execuções que muitas vezes aconteciam próximas aos estádios da Copa. Não à toa, após o fim do regime, o título mundial passou a ser associado à ditadura e, de certa forma, condenado pela opinião pública. Com o passar dos anos, outras narrativas foram aparecendo, algumas tentando dissociar o futebol da política daquela época. Ainda assim, a vitória na Copa do Mundo de 1978 tem menos brilho e não é tão reverenciada quanto aquela de 1986, principalmente pelo show de Maradona em cima da Inglaterra poucos anos depois da derrota na Guerra das Malvinas.

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Se a ditadura militar argentina foi um desastre em termos políticos e sociais, a economia tampouco prosperou naquele período. Muito pelo contrário: a dívida externa subiu de oito para 45 bilhões de dólares, a inflação (extremamente criticada pelos militares quando chegou a 182% no governo de Isabelita Perón) atingiu 343% em 1983, a participação da indústria no PIB caiu de 37,5% para 25%, voltando ao patamar dos anos 1960, e o déficit fiscal chegou a 15%. Para completar, a corrupção aumentou, com a utilização de grandes empresas estatais para servir ao interesse de militares e suas famílias, a despeito do discurso liberal dos comandantes.

Por conta desse conjunto de acontecimentos, a ditadura é encarada na Argentina como um período terrível, digno de ser lembrado para que nunca mais se repita. Diferentemente do Brasil, onde é possível encontrar com facilidade defensores e saudosos dos governos militares, é muito improvável que no país vizinho alguém se eleja a um cargo importante usando como discurso o elogio àqueles tempos. Como vimos, até o catártico momento de um primeiro título mundial acaba perdendo seu brilho por estar associado ao regime. Porém, ainda falta abordar outro lado dessa relação entre futebol e política.

Os clubes, entre vítimas e opressores

Por conta da atuação do governo durante a Copa do Mundo de 1978 e da estranha partida contra os peruanos, praticamente só se fala sobre isso quando o assunto é o encontro do mundo da bola e da política na Argentina. Porém, os clubes também tiveram de seguir a vida e disputar seus torneios sob o jugo do regime autoritário. Sem grandes interferências dentro de campo, as equipes argentinas tiveram destaque na Libertadores durante os primeiros anos da ditadura. Em 1976, o River Plate ficou com o vice-campeonato, sendo derrotado pelo Cruzeiro de Jairzinho e Raul Plassmann no jogo de desempate após uma vitória para cada lado.

Na sequência, o Boca Juniors viveu seus primeiros anos de glória no torneio continental. Primeiro contra o próprio Cruzeiro, também fazendo decisão em três jogos. Na temporada seguinte, a conquista veio com mais facilidade: empate contra o Deportivo Cáli na Colômbia e goleada por 4 a 0 em La Bombonera. Em 1979, a equipe comandada por Juan Carlos Lorenzo ainda chegou a uma nova final, desta vez caindo diante do Olimpia com uma derrota no Paraguai e um empate em La Bombonera. Depois disso, os xeneizes só voltariam ao topo da América do Sul na vitoriosa década de 2000.

Enquanto isso, o Campeonato Argentino seguiu a fórmula implantada em 1967: o Campeonato Metropolitano na primeira parte da temporada e a Liga Nacional, na segunda. Vale notar que, apesar de o Metropolitano se assemelhar mais aos estaduais do Brasil, posteriormente a AFA passou a reconhecê-lo como título nacional. O domínio ficou dividido entre os grandes clubes do país. Em 1976, o Boca venceu ambas as competições, enquanto o River Plate teve três títulos seguidos em 1979 e 1980. Estudiantes e Independiente também se destacaram, com dois títulos cada, e o Quilmes foi campeão nacional pela primeira e única vez na história do futebol profissional argentino, levando o Metropolitano de 1978.

Do lado de fora do gramado, a influência da política da política se fez sentir de formas diferentes. Por exemplo, Raanan Rein, autor do livro “Clubes de fútbol en tiempos de dictadura” junto de Gruschetsky e Rodrigo Daskal, constatou que não houve muitas mudanças em relação à vida cotidiana das agremiações. Em entrevista ao site El Intransigente, ele contou que pessoas de diferentes posições ideológicas se juntavam pelo bem do time para o qual torciam e “vítimas e algozes conviviam lado a lado”. Além disso, as eleições para a escolha dos dirigentes continuaram, fazendo dos clubes alguns dos poucos espaços onde a democracia ainda existia. O número de associados, inclusive, alcançou seu auge naquela época.

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Entretanto, a ditadura estendeu pontualmente suas garras na direção dos clubes quando viu sua hegemonia ameaçada. Foi o caso da repressão aos torcedores do Huracán que estendeu uma bandeira dos Montoneros, uma guerrilha urbana de esquerda. O episódio acabou com o assassinato do torcedor Gregorio Noya pela polícia. Além disso, Lorenzo D’Angelo, presidente do Lanús de tendências peronistas, teve de deixar seu cargo após o golpe.

Mais curiosa foi a passagem do filho do general Roberto Viola, que governou a Argentina interinamente entre março e dezembro de 1981, pelas equipes de futebol e de basquete do Atlanta. Conta-se que sócios do clube entregavam a ele papéis com o nome de presos ou desaparecidos, pedindo ajuda em sua localização ou libertação. Raana Rein contou, na entrevista ao Intransigente, que, possivelmente, uma dessas tentativas deu certo: Silvia Altamura, filha de um dirigente do Atlanta, teria sido liberada da prisão com a sua interseção.

Apesar disso, o River Plate foi o time argentino mais associado à ditadura. Isso aconteceu pelo uso do seu estádio, o Monumental de Nuñez, como palco da final da Copa do Mundo e por Carlos Alberto Lacoste, comandante da organização do torneio e presidente do país por onze dias, sucedendo Roberto Viola. Lacoste era sócio e torcedor dos millonarios e tentou influenciar na política do clube. Isso não significa, entretanto, que o River tenha buscado tal associação: em 1997, ele excluiu de suas lista de sócios Jorge Videla, Orlando Ramón Agosti (membro da primeira junta militar, comandada pelo próprio Videla) e Emilio Eduardo Massera, um dos homens fortes do regime.

Outro livro recente sobre o futebol durante a ditadura militar na Argentina é “Los desaparecidos de Racing”, lançado em 2018 pelo sociólogo Julián Scher. O amor pelo time de Avellaneda é o fio condutor da história de onze homens que não formaram um time de futebol, mas integraram a lista de desaparecidos pelo regime: Alejandro Almeida, Diego Beigbeder, Jorge Caffatti, Álvaro Cárdenas, Jacobo Chester, Dante Guede, Gustavo Juárez, Carlos Krug, Osvaldo Maciel, Roberto Santoro e Miguel Scarpato. Ao divulgar sua obra em Belo Horizonte, Scher resumiu, em entrevista ao jornal O Tempo, o sentido de contar a história das vítimas dessa maneira. “[O futebol] pode ser uma ferramenta eficaz para lutar por memória em tempos em que, tanto na Argentina quanto no Brasil, voltam a surgir quem quer nos convencer de que nesses países não houve genocídio e que não são tantos os desaparecidos. Nessa batalha de sentidos, o futebol é uma ferramenta válida”.

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