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Deixar o campo é uma forma efetiva de combater o racismo no futebol?

Por Luiz Vendramin Andreassa

A vida de Raheem Sterling é cheia de acontecimentos precoces. Quando tinha apenas dois anos de idade, perdeu seu pai, assassinado com uma arma de fogo. Aos seis, foi levado por sua mãe da Jamaica, onde nasceu, para Londres, uma decisão que mudaria sua história para sempre. Com dez, começou a jogar nas categorias de base do Queens Park Rangers e, aos quinze, foi vendido para o Liverpool por 450 mil libras. Meses depois, ficou no banco de reservas da equipe principal em amistoso dos Reds contra o Borussia Dortmund. Com dezessete anos, foi a vez da primeira convocação para a seleção da Inglaterra, culminando na ida para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Neste mesmo ano, participou do ataque que quase levou o Liverpool a conquistar a Premier League pela primeira vez. Atualmente, aos 24, Sterling vai além do estereótipo do boleiro moderno para se tornar uma das principais vozes a se levantar contra o racismo no futebol.

A primeira manifestação pública aconteceu em dezembro do ano passado. Depois de ter sido vítima de insultos racistas em partida do Manchester City, seu atual clube, contra o Chelsea, o atacante usou as redes sociais para criticar a imprensa inglesa, especialmente o jornal Daily Mail. Para justificar seu ponto, comparou duas manchetes a respeito de jovens colegas de equipe, um negro e outro branco, e a diferente maneira com que foram tratados. Uma das manchetes, sobre o zagueiro de origem nigeriana Tosin Adarabioyo, dizia: “Jovem jogador do Manchester City de 20 anos, que recebe 25 mil libras por semana, esbanja em mansão de 2,25 milhões de libras, apesar de nunca ter começado uma partida do Campeonato Inglês”. O outro título, a respeito de Phil Foden, era bem mais branda: “Jovem estrela do Manchester City Phil Foden compra casa de 2 milhões de libras para a mãe”.

Sterling não é o único sofrer com o racismo no futebol inglês, algo que acontece dentro e fora dos campos, na badalada Premier League e nos torneios infantis no interior do país. O The Guardian, de orientação progressista e linha editorial muito diferente do sensacionalista Daily Mail, contou, em longa matéria, casos que corroboram as visões mais pessimistas. Crianças ofendidas por conta da cor de sua pele; onipresença de brancos em torneios amadores, onde é preciso pagar para jogar; ex-jogadores negros que começam a carreira como técnicos em times pequenos, enquanto os brancos recebem melhores chances; casca de banana arremessada contra Aubameyang, do Arsenal. Para corroborar essa impressão, a Kick It Out, organização de combate ao racismo associada à Federação Inglesa de Futebol (FA), divulgou um aumento de 11% nas denúncias de discriminação na última temporada.

Uma dificuldade é transformar essas denúncias em investigação e punição. A própria Kick It Out vê sua atuação ameaçada por processos trabalhistas movidos por ex-funcionários e teme que o valor de 648.948 mil libras, recebido na temporada passada, seja confiscado por uma decisão judicial. Talvez tentando se antecipar a essa possibilidade, a FA lançou uma iniciativa própria, “No Room For Racism” (Sem espaço para o racismo). O problema, porém, persiste: muitas vítimas ou testemunhas de atitudes preconceituosas (seja contra negros, homossexuais, imigrantes ou muçulmanos) muitas vezes não chegam a fazer uma denúncia e, quando isso acontece, muitas delas acabam se perdendo na burocracia da FA e suas unidades regionais ao redor da Inglaterra.

Entretanto, seria enganoso pensar que essa aparente onda de racismo acontece somente na terra da rainha. No começo de abril deste ano, o filho de marfinenses Moise Kean, jovem revelação da Juventus com passagem e até gol marcado pela seleção da Itália, foi insultado com sons de macaco pela torcida do Cagliari. Vaiado durante toda a partida, ele comemorou seu gol, o segundo na vitória por 2 a 0, em frente aos torcedores rivais, motivo suficiente para o companheiro de equipe Leonaro Bonucci dividir a culpa entre as duas partes. “Moise sabe que quando se marca um gol, é preciso comemorar com o time e pronto. Foi um momento ruim, Kean poderia fazer algo diferente e é isso. Acho que a culpa é 50-50: ele estava errado, os torcedores estavam errados. Devemos ser um exemplo e crescer como um sistema de futebol”, disse o zagueiro. De olho no acontecimento, Sterling ironizou a declaração nas redes sociais.

O próprio Sterling se viu, aliás, no meio de outro caso de racismo dias antes das ofensas a Kean. O English Team visitou a seleção de Montenegro pelas eliminatórias da Eurocopa e, apesar da goleada por 5 a 1, alguns de seus jogadores saíram de campo revoltados. “Tomara que a Uefa lide com isso adequadamente. Quando eu e Rosey [Danny Rose, lateral-esquerdo] fomos até lá, estavam imitando macacos. Tivemos que manter a cabeça no lugar”, afirmou Hudson-Odoi. Sterling, por sua vez, exaltou a vitória como a melhor forma de responder ao racismo dos torcedores adversários. Assim, o atacante jogou holofotes sobre outra discussão bastante atual: jogadores devem deixar o campo ao serem vítimas de racismo? Caso façam isso, seria justo estarem sujeitos a eventuais punições? E quão efetiva seria tal atitude na luta contra o preconceito?

Punição, apoio e a dúvida das autoridades

O futebol, como parte da sociedade, comporta diferentes manifestações de preconceito desde seu início. A possibilidade de deixar o campo para combatê-las, entretanto, surgiu recentemente. Durante a Eurocopa de 2012, Mario Balotelli disse que tomaria essa atitude caso fosse vítima de insultos racistas e foi advertido pela organização do torneio. Por outro lado, recebeu o apoio de Ruud Gullit, ex-craque do Milan com atuação marcante no combate ao racismo. Um ano depois, o ganense Kevin-Prince Boateng chegou às vias de fato: ao perder a paciência com as ofensas da torcida do Pro Patria, em amistoso de pré-temporada do Milan, ele pegou a bola com as mãos e a chutou em direção à arquibancada – que não foi atingida por conta de uma grande. Ele então deixou o jogo e foi acompanhado por seus companheiros de equipe.

A grande dúvida é como a arbitragem e as confederações podem lidar com esses episódios. Em 2017, desta vez em jogo oficial pelo Campeonato Italiano, Sulley Muntari, do Pescara, foi alvo constante de ofensas pela torcida do Cagliari. Nos momentos finais, reclamou com o árbitro sobre a falta de atitude para conter esse comportamento. Ao invés de apoio, recebeu um cartão amarelo e, revoltado, deixou o campo. “Ele me disse que eu não devia falar com a torcida. Eu o perguntei se tinha escutado os insultos. Insisti que ele deveria ter a coragem de parar a partida”, declarou o atacante. “O árbitro não deveria apenas ficar em campo e soprar o apito. Ele deveria estar ciente dessas coisas. Se você parar a partida, essas coisas não vão mais acontecer”. Para completar, Muntari levou o segundo cartão amarelo e, consequentemente, o vermelho. Dias depois, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) desfez a suspensão automática do jogador.

Controvérsia ainda maior aconteceu com o brasileiro Serginho, do Jorge Wilstermann, da Bolívia. Em março, ele sofreu insultos por parte de torcedores do Blooming e, como forma de protesto, saiu do gramado do estádio Ramón Aguilera aos 40 minutos da segunda etapa (vídeo abaixo). A atitude recebeu o apoio do seu treinador, Miguel Ángel Portugal, e até do presidente Evo Morales, segundo o qual o futebol é um esporte que une os povos – ou pelo menos deveria. Juan Jordán, presidente do Blooming, por outro lado, depois de condenar as ofensas, tentou minimizar o episódio. “Este senhor, sabemos, é mais complicado que a tabuada do 17. Tem antecedentes de provocação, discriminação e racismo”, afirmou o dirigente, que ainda pediu para que não se perca o “folclore do futebol”, supostamente representado pelas provocações. Por fim, Jordán entrou com ação no Tribunal de Justiça Desportiva pedindo suspensão de um ano para Serginho.

No Reino Unido, a saída de campo em um jogo das principais ligas é vista como algo iminente e já rende discussões. Mims Davies, ministra do esporte (e, vale notar, membro do Partido Conservador) defendeu essa decisão. Segundo ela, a FA deveria mudar suas regras e não aplicar multas nesses casos, pois estaria enviando um “sinal errado”. “É absolutamente correto que os jogadores possam tomar as decisões certas e nós devemos apoiá-los”, disse Davies. O jornalista esportivo Barney Ronay, do The Guardian, expressou opinião semelhante ao escrever que qualquer atleta que deixe a peleja merece apoio. Ele lembra que, antigamente, esses atletas tinham menos meios de se expressar e resistir, restando a eles “jogar brilhantemente e não demonstrar medo”. Porém, não se pode exigir de alguém tal heroísmo em frente à discriminação. O artigo cita ainda a incapacidade das organizações para dar uma resposta adequada a esses casos, citando o fato de a Kick It Out ter apenas dezessete funcionários.

Outra figura importante a comentar o tema recentemente foi Gary Neville, ex-jogador do Manchester United e da seleção inglesa. O hoje comentarista do canal Sky Sports lembrou de casos de discriminação que presenciou durante a carreira e foi sincero ao refletir sobre sua atitude à época. “Depois das partidas [em que isso aconteceu], no vestiário, eu nunca sentei como jogador, nunca lidei com isso durante o jogo e parei para pensar sobre isso. Nós nunca reagimos durante o jogo”, disse o ex-lateral direito. “Raheem falou que pensa ser errado sair do campo, mas você pode ver jogadores negros dizerem que é certo. Eu acho que, até que alguém lide com isso e haja um consenso sobre qual é a melhor punição, como os jogadores devem agir no momento, como os treinadores devem agir… Do meu ponto de vista de hoje, tem de haver ação real porque já deu”, completou.

Traçando a linha do inaceitável

Se é possível enxergar algo próximo de um consenso sobre não se punir jogadores que abandonam uma partida como protesto contra o preconceito, outra discussão pode ser feita a respeito da efetividade dessa atitude. Ela seria, afinal, uma boa resposta às ofensas discriminatórias? Vamos começar pelos argumentos negativos, ou seja, contra a retirada. Quando isso acontece, a partida pode ser interrompida, fazendo com que todos os envolvidos (atletas, comissões técnicas, clubes, arbitragem, torcida) paguem pelos erros de alguns indivíduos. É um debate que também acontece quando um time é punido pela violência de seus torcedores, com penas como perda de mandos de campo e jogos com portões fechados. Há quem peça pela retirada de pontos ou até rebaixamento nesses casos. Não seria melhor punir rigorosamente apenas os delinquentes, ao invés de um clube e todos os seus apoiadores?

Outro argumento diz que sair de campo “empodera” os racistas, ou seja, lhes dá a “capacidade” de fazer um jogador ou mesmo uma equipe inteira se retirarem. Seria uma forma de capitular a quem não deveria ter esse poder. O foco, nesse caso, deveria ser outro: cobrar das autoridades investigação e punição dos indivíduos, seja com banimento dos estádios ou, dependendo da legislação de cada país, com multas ou até a prisão. Além disso, corroborando as palavras de Sterling, permanecer na cancha e vencer a partida seria uma forma de demonstrar superioridade e calar as afirmações racistas que tentam colocar negros como inferiores – a exemplo da histórica conquista de quatro medalhas por Jesse Owens nas Olimpíadas de 1936 na Alemanha, justamente quando o governo nazista esperava colecionar vitórias para demonstrar a suposta superioridade do povo ariano.

O problema é que não se pode exigir tamanho gesto de grandeza e heroísmo, como Barney Ronay afirmou em seu artigo. Ninguém é obrigado a aguentar ofensas e injúrias para (tentar) dar o troco na bola e provar seu valor, como se alguém fosse obrigado a provar algo para seus ofensores. É possível até mesmo comparar a situação do jogador com a de um trabalhador de qualquer outra área. Ele tem a obrigação de suportar, no seu ambiente de trabalho, tal tipo de situação? Por mais que tenha diferenças em relação aos trabalhadores “comuns” (desde o salário até a presença da torcida), um jogador de futebol ainda é um profissional exercendo uma função remunerada de onde tira seu sustento, como qualquer outro empregado. Desse ponto de vista, pouco interessa se a saída de campo “empodera” os racistas ou não.

Em relação a quem aponta como solução a cobrança de atitudes e punições por parte das autoridades, é preciso lembrar que gestos de protesto não excluem essa possibilidade – na verdade, podem até reforçá-la. Uma atitude mais radical é uma forma de chamar a atenção de todos para a chaga do preconceito, de modo que, pela pressão de torcedores, atletas e imprensa, as federações, os clubes e os órgãos do governo saiam da inércia. E é esse o ponto principal em deixar o gramado: traçar uma linha a partir da qual não certas atitudes não são aceitas e mostrar que o racismo não combina com o futebol. Mais do que dar um fim ao racismo, o ato tem por objetivo se posicionar contra o inaceitável. Nesse sentido, pelas discussões que tem causado, é possível considerá-lo uma ferramenta eficiente.

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