Por Luiz Vendramin Andreassa
O amor pelo futebol faz com que muitos de seus admiradores procurem ressaltar seus efeitos benéficos para a sociedade.“Não é só um jogo”, “muito mais do que futebol” (nome de um ótimo podcast, inclusive) e “mais que um clube” são frases usadas para expressar essa crença. Entretanto, é difícil apontar evidências concretas dessa suposta influência, uma vez que a maioria das afirmações se baseia em relações não passíveis de comprovação. Como afirmar, por exemplo, de modo irrefutável, que a admiração por um jogador estrangeiro ou de costumes diferentes faz dos torcedores pessoas mais tolerantes?
Ainda assim, é possível fazer tentativas. E justamente a hipótese citada acima foi testada num estudo publicado no começo do mês de junho. Ala’ Alrababa’h, William Marble, Salma Mousa e Alexandra Siegel, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, coletaram e compararam dados para responder à pergunta que dá nome à pesquisa: “Can Exposure to Celebrities Reduce Prejudice?” (“Exposição a celebridades pode reduzir o preconceito?”). A cobaia, por assim dizer, é um dos jogadores mais famosos e admirados da atualidade, o atacante Mohamed Salah. Falemos um pouco dele para contextualizar a pesquisa.
Nascido na cidade de Nagrig, no norte do Egito, Salah iniciou a carreira profissional no Al-Mokawloon e, dois anos depois, se transferiu para o Basel, da Suíça, onde foi campeão nacional duas vezes. Suas atuações renderam um passo largo na carreira: em 2014, foi comprado pelo Chelsea. Em Londres, porém, ele não repetiu o bom desempenho e acabou emprestado para Fiorentina e Roma. Foi no clube da capital italiana que ganhou novamente destaque individual e uma nova chance na Inglaterra, desta vez no Liverpool, que o comprou por 42 milhões de euros, na transferência de um jogador africano mais cara da história.
Sob o comando de Jurgen Klopp, o futebol de Salah explodiu e o fez chegar a novos patamares. Anotou 43 gols na temporada, encantou a torcida e comandou a equipe na volta à final da Liga dos Campeões. O sonho da conquista do maior torneio de clubes do mundo foi adiado logo nos primeiros minutos por um golpe de Sergio Ramos que o fez lesionar o ombro ao cair no chão e, pouco depois, abandonar a partida aos prantos. Sem seu principal atacante e em noite infeliz do goleiro Loris Karius, o Liverpool levou 4 a 1 do Real Madrid. Até mesmo a participação do craque na Copa do Mundo daquele ano acabou comprometida.
Aqueles momentos de dor e decepção só serviram para aumentar a dramaticidade e valorizar a volta por cima, como nas mais clichês histórias – e na vida. Mesmo não ostentando números impressionantes como na temporada anterior, Salah foi mais uma vez o destaque do Liverpool, que bateu seu recorde de pontos na Premier League, apesar de não ficar com o título, e chegou novamente à decisão da Liga dos Campeões. Desta vez, os primeiros momentos da partida reservaram um destino feliz para Salah e os Reds: foi ele quem converteu o pênalti cometido por Sissoko e marcou o único gol da vitória sobre o Tottenham.
Fora de campo, também é possível dizer que Mo, como é chamado carinhosamente, é um sucesso. Com sorriso fácil e uma simpatia natural, ele se mantém longe de confusões que possam colocar em xeque seu profissionalismo. Mais que isso, já participou de ações do Liverpool como uma pegadinha com pequenos torcedores. Nela, crianças foram chamadas para participar de uma competição de narração de gols anotados por Salah. No auge das locuções, o ídolo aparecia por uma parede falsa, causando surpresa e êxtase em seus admiradores. O vídeo já foi assistido mais de 18 milhões de vezes no YouTube e pode ser visto abaixo (vale a pena conferir). Mais recentemente, o jogador foi incluído pela revista Time em sua lista das 100 pessoas mais influentes de 2019 com direito a um perfil elogioso escrito por John Oliver. “Mo Salah é melhor como ser humano do que como jogador de futebol. E ele é um dos melhores jogadores de futebol no mundo”, escreveu o apresentador americano.
Tudo isso só fez reforçar o sentimento da torcida do clube inglês pelo jogador egípcio. Ao louvar seu ídolo, os torcedores parecem fazer das diferenças motivo de união. Um dos gritos em sua homenagem diz: “Se ele marcar mais, eu serei muçulmano também” e “[Se] Ele está sentado numa mesquita, é onde eu quero estar”. A referência se dá por conta da forma como Salah expressa sua religiosidade: ele toca a testa no gramado ao comemorar seus gols, tem uma esposa que veste constantemente o hijab (o véu usado por mulheres muçulmanas) e tem uma filha chamada Makka, em homenagem a Meca, cidade da Arábia Saudita sagrada para sua religião.
Essa combinação de fatores fez os cientistas políticos de Stanford encontrarem na relação entre o atacante e seus fãs o objeto perfeito para estudar a extensão dessa influência. Eles partem da “hipótese do contato”, segundo a qual a exposição positiva a alguém de um grupo diferente pode ajudar a diminuir preconceitos. Para isso, é preciso que esse representante do grupo externo apresente suas características (no caso, a religiosidade) em contexto favorável, endossado por autoridades comuns, em situação de igualdade e marcado pela cooperação por um objetivo mútuo. Apesar de a exposição a uma celebridade como Salah não satisfazer a parte da igualdade, ela preenche os outros requisitos: o jogador e seus admiradores compartilham a autoridade do clube e da comissão técnica e buscam os mesmos objetivos (títulos).
Esse tipo de relação é bem diferente daquela normalmente vivenciada pelos ingleses com muçulmanos, muito menos tranquila: as pessoas desse grupo geralmente são desconhecidas, vivem em grupos e não têm a seu favor uma primeira impressão positiva. Uma pesquisa da YouGov, citada pelo estudo, mostra que a islamofobia vem crescendo no Reino Unido. Mais da metade dos respondentes concordou com a afirmação “existe um conflito fundamental entre o islã e os valores da sociedade britânica”. O trabalho dos cientistas políticos de Stanford ainda traz dados sobre a situação econômica dessas pessoas, citando dados como a probabilidade 76% maior de homens muçulmanos estarem desempregados, em comparação a brancos de outras religiões.
Se o preconceito está no dia a dia e é facilmente verificável, como comprovar o efeito do sucesso de Salah como possível atenuante? Os autores colheram dados de todos os departamentos de polícia da Inglaterra e constataram que no condado de Merseyside, onde fica a sede do Liverpool, os crimes de ódio tiveram uma queda de 18,9% entre 2015 e 2018. Porém, um número analisado isoladamente pode ser enganoso. Por isso, a variação dos crimes de ódio foi comparada com a dos outros tipos de crime. Surpreendentemente, não houve mudanças significativas nos números desses outros tipos, com exceção daqueles relacionados a drogas e à ordem pública, que aumentaram no período. Ou seja, a queda nos crimes de ódio não se deu por conta de uma diminuição geral nas infrações à lei.
Mesmo assim, é possível pensar que a queda dos crimes relacionados a preconceitos em Merseyside esteja relacionada a uma tendência de toda a Inglaterra. Os autores, então, analisaram os dados referentes a outros locais do país para fazer a comparação. A constatação dá mais força à hipótese do “efeito Salah”: as taxas dos crimes de ódio nas regiões dos outros 23 departamentos de polícia variaram sem seguir uma tendência nítida. Em alguns lugares, a taxa aumentou, enquanto em outros, diminuiu.
O segundo passo realizado em “Can Exposure to Celebrities Reduce Prejudice?” foi coletar 15 milhões de tuítes de torcedores dos clubes ingleses com mais seguidores no Twitter (Manchester United, Arsenal, Chelsea, Liverpool e Manchester City), além do Everton, tradicional rival do Liverpool. Entre esses, 44 mil tuítes eram relacionados à religião islâmica. Desses, uma amostra de cerca de 1500 foi analisada em busca de conteúdo anti-muçulmano. A descoberta dos autores é que as postagens desse tipo feitas por torcedores dos Reds tiveram uma queda depois da vinda de Salah, em junho de 2017, enquanto aquelas dos seguidores dos outros clubes não foram necessariamente por essa direção. E mais: se a tendência anterior à transferência fosse mantida, o número de tuítes preconceituosos dos fãs do atual campeão europeu deveria ter sido 52,3% maior do que realmente foi.
Por fim, para aumentar a confiabilidade do trabalho, os pesquisadores colheram a opinião dos torcedores diretamente. Ele propuseram um complexo teste que envolvia afirmações sobre o sucesso ou insucesso de Salah como.jogador e sua relação com a religião, para depois apresentar opções de respostas a fim de descobrir o que cada um pensava a respeito de imigrantes e muçulmanos. Desta vez, o resultado não foi tão enfático: “a exposição à religiosidade de Salah causou um pequeno e significativo aumento nas respostas tolerantes sobre a compatibilidade do islã com os valores britânicos”.
“A exposição positiva a membros famosos de um grupo externo pode mitigar atitudes e comportamentos preconceituosos”
A conclusão dos autores da pesquisa é para deixar felizes aquelas pessoas citadas no primeiro parágrafo, que valorizam a influência do futebol fora das quatro linhas. “Nossos resultados sugerem que a exposição positiva a membros famosos de um grupo externo pode mitigar atitudes e comportamentos preconceituosos, potencialmente através do fornecimento de novas informações entregues de maneira que induz a empatia”. A discussão, porém, não acaba aí.
Idealista e pragmático: dois modos de ver o “efeito Salah”
Tudo parece bem amarrado nessa história. Mohamed Salah é um jogador excepcional, rapaz simpático e religioso fiel, mas de cabeça aberta. Indiretamente, ele usa essas características para tornar seus admiradores mais tolerantes em relação a imigrantes e muçulmanos, chegando, na conclusão do estudo, a influenciar a queda de crimes de ódio e as manifestações de preconceito no Twitter. O que pode ser visto como negativo é justamente essas consequências positivas estarem ligadas, principalmente, ao desempenho futebolístico do jogador.
Nesse caso, o respeito e a tolerância não existiriam por conta do seu valor em si, ou por em razão de uma genuína disposição a respeitar e tolerar um representante de um grupo externo. Esses sentimentos estariam condicionados à admiração e ao objetivo mútuo dos indivíduos. Desaparecendo as duas condições, seja por transferência a um clube rival ou queda de desempenho, seria possível uma regressão dos avanços apontados pelo estudo. Como o foco está no que pode ser considerada a situação ideal – ou seja, o respeito e a tolerância existirem independentemente de outros fatores -, vamos chamar esse ponto de vista de idealista.
O outro modo de analisar a situação realça, por outro lado, o efeito concreto de casos como o do “efeito Salah”. Se os torcedores passam a ter uma atitude mais compreensiva e empática a grupos sociais excluídos por conta do desempenho de seu ídolo, não há que se olhar pelo lado negativo. Afinal, para o avanço da sociedade concorrem diferentes meios, e nem todos são exatamente louváveis por si próprios. E justamente o contato positivo entre pessoas de diferentes origens e ideias seria a abertura, o primeiro passo para sentimentos mais louváveis no futuro.
O Futebocracia já abordou esse assunto em matéria sobre a aposentadoria de Mesut Özil da seleção alemã, após receber críticas e mensagens xenofóbicas, e o contraste com o sucesso de Kylian Mbappé, filho de um casal africano da periferia de Paris. Vale lembrar a declaração do meia alemão na carta em que anunciou sua aposentadoria: “Eu sou alemão quando ganhamos, mas um imigrante quando perdemos”. Para complementar o pessimismo, naquela ocasião citamos um artigo da revista britânica The Economist a respeito da influência do futebol sobre os preconceitos. Segundo ela, há pouca evidência de que este esporte ajude a integração racial. Ao menos, o estudo sobre a influência de Salah sobre os torcedores do Liverpool pode começar a mudar essa impressão.