Por Luiz Vendramin Andreassa
William De Lucca não estava se sentindo confortável no Allianz Parque, apesar da vitória tranquila que o Palmeiras aplicava no São Paulo ainda no primeiro tempo naquele 8 de março de 2018. Parte da torcida alviverde resolveu provocar os rivais e acabou ofendendo um dos seus, levando-o ao desabafo no Twitter. “A torcida do Palmeiras, em sua homofobia típica, canta que ‘todo viado nessa terra é tricolor’. Parece que encontrei uma exceção à regra: eu mesmo, viado e palmeirense, e que cola no estádio em TODOS os jogos’”. No intervalo, veio a surpresa: o tweet viralizou, foi compartilhado inúmeras vezes, atraiu pedidos para entrevistas em diversos veículos e despertou uma discussão nacional a respeito da homofobia no futebol brasileiro.

Quase um ano e meio depois, De Lucca se mantém relevante na imprensa, agora do outro lado, exercendo a profissão na qual se formou. Já são dezenas de personagens ligados à esquerda e ao progressismo entrevistados no “De Lucca Entrevista”, do canal do Brasil 247 no YouTube. Entre nomes mais e menos famosos, o programa conta com figuras de relevância até mundial, como o jornalista Glenn Greenwald. É a prova de que o palmeirense de 33 anos encontrou seu espaço na mídia para seguir levantando os temas que o fizeram famoso durante aquele Choque-Rei de 2018. Trabalho que custa tempo e até ameaças, mas tem suas recompensas, como contou em conversa de quase uma hora com o Futebocracia.
A entrevista a seguir, levemente editada para fins de clareza e concisão, ajuda a entender as várias faces que compõem a identidade singular de William De Lucca.
Futebocracia: O que representou na sua vida aquele famoso tweet no qual protestou contra manifestações homofóbicas da torcida do Palmeiras?
De Lucca: A repercussão foi muito inesperada. Eu já tinha feito entrevistas para vários veículos grandes, SporTV, ESPN, sobre ser gay e ser palmeirense, ir a jogos de futebol, gostar de um time de futebol, estar nesse meio. Mas foi meio que surpreendente. Eu não esperava essa repercussão, acho que ninguém esperava essa repercussão. No intervalo do jogo vários jornalistas esportivos que me seguem queriam que eu falasse sobre o tema.
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F: Você percebeu alguma mudança em relação à tolerância e respeito no futebol nesses últimos tempos? Houve pelo menos o amadurecimento de alguma discussão?
DL: Nada mudou efetivamente. Tivemos pouco ou nenhum avanço em relação ao combate à homofobia no futebol. Nós tivemos nesse período umas duas ou três multas contra a CBF, mas continuamos vendo várias demonstrações de homofobia no cotidiano dos estádios e elas não recebem nenhum tipo de reprimenda por parte dos clubes. A gente vê ainda que a homofobia é muito aceitável nos espaços do futebol, que os clubes relativizam, não se importam. Em que pese que no Dia Mundial de Combate à Homofobia, no mês passado, muitos clubes se manifestaram, muitos também não falaram nada, como Palmeiras e Corinthians. Eles preferiram não entrar nesse debate, um debate muito importante, que o Bahia tem feito. A gente tem visto pequenos avanços, pequenas mudanças de rumo, mas acho que ainda falta um caminho muito grande para que, um dia, os estádios no Brasil recebam pessoas LGBTs sem que eles sofram nenhum risco.
“A gente tem visto pequenos avanços, mas falta um caminho muito grande para que os estádios no Brasil recebam pessoas LGBTs sem oferecer nenhum risco.”
F: Realmente, parece que não houve grandes mudanças, mas, pelo menos, agora se discute isso minimamente.
DL: Eu sempre digo que esse debate não é independente do debate na sociedade. Não podemos pensar em homofobia e transfobia no futebol sem pensar nisso em outros espaços, como as escolas, as igrejas, as casas das pessoas. Esses espaços são tão importantes quanto o do futebol, que é um reflexo do que vemos na sociedade. Vivemos numa sociedade extremamente homofóbica, transfóbica, machista. Só conseguiremos uma mudança real no futebol se vermos uma mudança real na sociedade, que passe pelas transformações necessárias para que tenhamos uma educação de diversidade.
F: Na sua opinião, quais são as primeiras medidas, os primeiros passos para começar a combater o preconceito e fazer as vítimas dele se sentirem mais seguras e acolhidas dentro dos estádios?
DL: Primeiro, a gente precisa que os clubes façam esse debate. Hoje o Bahia faz, o Vasco faz, mas a maioria absoluta não faz esse debate. Você, como clube, quando faz essa conversa, independentemente das pessoas concordarem ou não, coloca esse assunto em pauta. Essa é a parte da educação. Mas, na outra ponta, precisamos ter políticas de combate a quem tem esse tipo de comportamento. Precisamos ter a criminalização da homofobia, como tivemos no STF, e também precisamos que as federações punam os clubes por comportamentos homofóbicos de suas torcidas. Quando começar a perder mando de campo por causa de homofobia, e não apenas multa, quando começar a doer no bolso, os clubes vão perceber que homofobia custa caro.
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F: Logo depois daquele episódio, você disse que não ia sozinho a jogos do Palmeiras, o que foi inclusive recomendado pela delegada que investigou ameaças que você sofreu. Como é isso hoje em dia? Você se sente seguro? É reconhecido nos estádios?
DL: Eu fui em poucos jogos do Palmeiras neste ano por motivos profissionais, estou trabalhando muito e acabo ficando sem tempo. O momento político do país também dá uma desanimada. Eu vejo em casa, torço, mas fico desanimado de ir ao estádio com esse clima fascista que está no Brasil, especialmente o Palmeiras, cuja diretoria, de forma incompreensível pela história do clube, se aproximou tanto de um fascista como o Jair Bolsonaro. Isso deixa a gente, enquanto torcedor progressista do Palmeiras, muito incomodado. Torcedores progressistas já me reconheceram, mas a princípio não tive nenhum problema sério. As ameaças acontecem todas na internet.

F: As ameaças são algo constante e presente na sua rotina?
DL: Sempre é. Hoje em dia tem gente que me ofende, me xinga, diz que eu usei o Palmeiras, que eu fiz uso político. Isso é comum. Eu sou um ativista político, tenho minhas ideias e filiação partidária claras, e isso não é algo que me faça se esconder, não tenho motivo pra isso. Mas as pessoas acham que eu não posso ser petista, palmeirense e gay, que não posso falar sobre essas coisas ao mesmo tempo, como se elas não tivessem relação. Para mim, têm relação, pois tudo isso sou eu. Quando você é gay e ativista, você tem de aprender a conviver, especialmente nesses tempos em que temos visto um aumento não só da intolerância, mais que isso, de um Estado autoritário mesmo, que faz com que as pessoas tomem medidas intolerantes e autoritárias. Tenho sido mais ofendido, mais ameaçado, mais xingado. É algo frequente na minha vida, mas é algo que a gente se acostuma. Falei em um documentário que não quero ser mártir, não quero morrer, não quero apanhar, não é algo que passe pela minha cabeça. Quero viver minha vida de forma livre, quero andar de mãos dadas no estádio, na rua, quero andar com meu namorado sem correr o risco de apanhar com uma lâmpada na cara ou acabar como o rapaz que andava na Avenida Paulista este ano e morreu. Para que eu e outras pessoas gays, lésbicas, travestis e transsexuais tenham o direito de viver seus afetos de forma livre e independente.
“As pessoas acham que não posso ser petista, palmeirense e gay, como se elas não tivessem relação. Para mim, têm relação, pois tudo isso sou eu.”
F: O Palmeiras chegou a entrar em contato com você, pelo menos, para dar os parabéns ou apoiar sua atitude?
DL: Não, nunca. Eu acho que o Palmeiras se afasta um pouco dessa pauta, a partir do momento em que temos o Dia Mundial de Combate à Homofobia e o Palmeiras simplesmente ignora que seja um debate válido a ser feito junto à torcida. Eu já fui ao Allianz Parque umas quatro ou cinco vezes para dar entrevistas, tive contato com as pessoas de lá, gente que trabalha no estádio, que é progressista, que disse que apóia, que se pudesse teria mais eventos relativos ao tema, mas eles sabem que a torcida do Palmeiras iria agir de forma muito intolerante. Eles acabam evitando.
F: Em alguns grupos progressistas há quem acuse o Palmeiras de ser um time de direita. Outros invocam certos episódios da história do clube para justificar essa posição. Depois da presença de Bolsonaro na entrega da taça, ano passado, parece que essas afirmações aumentaram. Você, como palmeirense tão ligado às causas progressistas, como avalia a torcida? Existe mesmo uma tendência à direita?
DL: Acho que não. Acho que a gente tem muita gente progressista, que defende essas pautas, que traz essas pautas para o debate. [Os progressistas] Não são a maioria absoluta da torcida, assim como não é em outros clubes. As pessoas precisam entender que o Palmeiras é um time de imigrantes, gente pobre que veio ao Brasil para tentar a vida, trabalhar no chão de fábrica. Gente que fazia greve, que sofreu muito, que hoje talvez sofreria preconceito do presidente [do Brasil]. A pauta da imigração hoje não é forte no Brasil, mas se ele [Bolsonaro] fosse presidente dos Estados Unidos, ou se tivéssemos uma “ameaça” de invasão de estrangeiros, nós teríamos o presidente criticando. É incrível que o torcedor do Palmeiras não veja que isso pode ser um problema.

F: Você estava no Allianz Parque em alguma das aparições do Bolsonaro lá?
DL: Estava em uma vez antes disso, quando ele estava em um jogo do Palmeiras no Campeonato Brasileiro do ano passado. Atrás de mim. Teve muita gente aplaudindo, muita gente vaiando, eu fui uma das pessoas que vaiaram. É muito ruim ver um sujeito como ele não só no estádio do Palmeiras, mas especialmente na presidência, ter um fascista assumido. E que, por coincidência, torce pro meu time, ou diz que torce, porque já vestiu a camisa de vários times, tendo inclusive a anuência da diretoria para ir ao estádio, ir em lugares especiais, entrar em campo, dar volta olímpica… Isso é muito triste.
F: O Casagrande fez um depoimento tocante ao comentar seu caso, fazendo inclusive uma comparação com a situação dele como dependente químico, em relação ao preconceito que ambos sofrem. Você chegou a ver o vídeo? O que sentiu ao assisti-lo?
DL: Eu acho incrível. Dentre essas pessoas que são mais progressistas, o Casagrande é uma dessas pessoas. É difícil achar gente progressista falando assumidamente no futebol. Às vezes achamos um torcedor, um jornalista, mas acha ex-jogador é mais raro. Eu fiquei muito tocado. Depois peguei o número de WhatsApp dele, conversamos um pouco. Ele foi muito simpático, muito carinhoso comigo. Eu acho que ele tem uma história de vida muito incrível e fico feliz que minha história tenha tocado ele, já que a dele é muito bonita, de superação. Queria que tivéssemos mais “Casagrandes”, que fossem homens mais honrados e pensassem na sociedade de forma mais progressista.
“Eu, como homem gay, tenho minha vida e minha existência ameaçadas o tempo todo. A gente nunca sabe com quem cruzamos na rua”
F: Como tem sido seu trabalho no Brasil 247? E o seu programa? Qual foi sua entrevista favorita?
DL: Eu estou há mais ou menos um ano e meio no 247, no site e também no programa, o “De Lucca Entrevista”, todos os dias no YouTube. É uma experiência muito recompensadora. O 247 é um dos raros espaços de mídia progressista que temos no Brasil, é hoje o maior canal desse campo no YouTube. Tem muita gente assistindo, muita gente me encontra na rua e vem conversar, diz que assiste o programa, que gosta do que assiste. Eu acho isso fenomenal. É um espaço que eu tenho e sou muito grato ao Léo Attuch, que é o diretor do 247, por ter feito o convite, porque é um dos espaços mais importantes que temos de mídia contra-hegemônica para poder ressoar essas vozes que não têm espaço na mídia hegemônica.
F: Você se filiou ao PT. Acredita que estar filiado a um partido pode comprometer sua isenção como jornalista?
DL: Eu acho que tem jornalistas que não são filiados a partidos políticos e têm um jornalismo mais comprometido que o meu. Eu prefiro que a pessoa que me lê, que vê meus vídeos no YouTube, que me seguem no Twitter e no Facebook, saibam quem eu sou. Que eles saibam que eu sou gay, sou socialista, sou vegano – ainda não vegano, mas vegetariano em transição -, que sou palmeirense e que sou filiado a um partido político. A partir daí, com ela sabendo o que eu sou e o que eu faço, ela pode tirar as conclusões sobre o que eu apresento e o que eu escrevo. Acho que isso é mais honesto com quem lê meu conteúdo do que quem vai para a Globo e diz que não tem partido político, mas na verdade está fazendo campanha aberta para partidos políticos. Eu tenho lado, sempre tive lado. A minha atuação profissional, em alguns momentos, não me permitiu que esse lado ficasse exposto. Hoje, no 247, eu tenho esse privilégio, que outros jornalistas não têm, de ser independente, ter minha filiação partidária, ter minhas ideologias.

F: Entre as várias entrevistas que você fez, qual foi a que mais gostou? Qual delas você mostraria pra uma pessoa que quer conhecer seu trabalho?
DL: Tem entrevistas que eu gosto muito. Como eu tenho a sorte de fazer a pauta do programa, que já está em quase cem edições, eu posso escolher quem eu levo. Nesse sentido, eu acho que todos os entrevistados são bons, porque gosto deles, admiro. Mas eu sempre tive uma admiração pela deputada Maria do Rosário, do Rio Grande do Sul. É uma pessoa que sempre foi muito perseguida, então tenho uma certa identificação com ela em relação a isso. Na entrevista com ela, ela me desenhou. Ela estava conversando comigo e me desenhando. Me deixou muito feliz e me emocionou muito. Outra entrevista que não posso deixar de mencionar é com a professora Joana Belarmino, da Universidade Federal da Paraíba que é cega. A entrevista foi assistida pelo presidente Lula, que me mandou uma carta lá de Curitiba dizendo que viu o programa. Foi incrível saber que ele vê os meus programas e envia uma carta.
F: Você tem planos de, um dia, concorrer a um cargo eletivo?
DL: Eu acho que, mesmo que eu tenha a intenção, esse projeto precisa ser coletivo. Não existe candidatura de uma pessoa, ninguém se elege quando tem uma candidatura que seja um projeto pessoal. Eu tenho um ativismo há anos, que é reconhecido, tenho espaços importantes onde participo e acho que, se a gente chegar em um período em que eu veja que várias pessoas se sintam representadas pelo que eu sou, pelos meus ideais e pelo que eu acredito, podemos ter essa conversa. Acho que não é o momento ainda, mas eu, quando entrei para a política partidária, me deixei à disposição do partido para o que ele achar que for o melhor. Se chegarmos perto de um período eleitoral e o partidos e as pessoas que me cercam acharem que posso representá-las com um mandato, a gente vai ter essa conversa.
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F: Como tem sido a vida de ativista e jornalista opositor em tempos de governo Bolsonaro?
DL: É difícil, porque a gente viu uma fase do Brasil [mandatos de Lula e Dilma] em que, mesmo tendo muitos problemas, tivemos pelo menos perspectiva de ter um país que fosse mais progressista. Hoje, ter esse homem na presidência dá um recado muito ruim, de que o preconceito e a intolerância sejam aceitáveis e mesmo premiados. Ele foi premiado com a presidência da República ao ter uma vida pública de intolerância. É muito difícil ser ativista com um presidente assumidamente homofóbico, machista, racista, contra imigrantes, apoiador de uma ditadura que matou milhares de pessoas no Brasil, que faz homenagens a um homem com o Ustra, que foi um dos mais cruéis torturadores da ditadura. Isso faz com que a gente se sinta em risco. Mas eu acho que, ao mesmo tempo, temos um senso de dever. Nosso trabalho, enquanto ativistas, como diz o Marighela, “um dos milhares de brasileiros que resistem”, é continuar fazendo isso, resistir. Eu, como homem gay, tenho minha vida e minha existência ameaçadas o tempo todo. A gente nunca sabe com quem cruzamos na rua, no shopping, no metrô, quando estamos de mãos dados com o namorado, e não sabemos o que elas podem fazer. Existir já resistir. Eu continuo resistindo para poder ajudar nesse processo de construir uma sociedade mais tolerante, mais diversa, sem homofobia, sem racismo, que seja boa para a maioria dos brasileiros, especialmente aqueles que mais precisam.