Por Luiz Vendramin Andreassa
Desde o momento em que Joseph Blatter, então presidente da Fifa, abriu o envelope e tirou de dentro dele uma folha com o nome “Qatar”, o mundo voltou seus olhos – e suas críticas – ao pequeno país do Oriente Médio. Era noite de 2 de dezembro de 2010 e aquela cerimônia oficializava o Catar como primeira nação árabe a ter o direito de sediar a Copa do Mundo de futebol. Mas muito viria a ser debatido sobre essa escolha e sua contradição com valores que a Fifa diz defender, como os direitos humanos.
Sob praticamente todos os aspectos – legais, logísticos, esportivos, políticos, morais – a vitória passou a ser questionada. O primeiro deles diz respeito à própria prática do futebol. O Catar não tem tradição no esporte e nunca participou de uma Copa do Mundo, apesar de ter vencido a Copa da Ásia em 2019. O clima desértico da região é um desafio para a prática de qualquer atividade física. Durante o verão, no meio do ano, as temperaturas passam dos 40ºC e podem chegar aos 50ºC. Por isso, o torneio foi deslocado dos tradicionais meses de junho e julho para novembro e dezembro, quando o calor é mais brando. Ainda assim, os estádios possuem sistema de ar condicionado para amenizar o problema.
Outro ponto é o regime político catari: uma monarquia absolutista onde membros da família Al Thani dominam o poder desde o século XIX. O emir, como é chamado o líder do país, tem controle quase ilimitado sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Qualquer forma de oposição ou contestação é reprimida pelo governo: ativistas e jornalistas que denunciam abusos, inclusive aqueles relacionados à Copa do Mundo, são presos e perseguidos, sem direito pleno a defesa ou mesmo a julgamento.
O islamismo é a religião oficial de Estado e estabelece diversas leis baseadas em seus preceitos. No Catar, é proibido vender ou consumir bebidas alcoólicas, com exceção de alguns locais, como hotéis internacionais. A homossexualidade é crime e relações entre pessoas do mesmo sexo podem ser punidas com prisão de até três anos. As mulheres, por sua vez, vivem sob tutela e precisam da autorização de homens para exercer diversas atividades, como se casar, estudar fora do país ou mesmo trabalhar em certos cargos públicos.
A realização da Copa do Mundo em um país conhecido pelo desrespeito aos direitos humanos e às liberdades individuais contrasta com o que prega o estatuto da Fifa. O artigo 3 do documento, por exemplo, afirma que a organização se compromete a “respeitar os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e se esforçar para promover a proteção desses direitos”. A contradição fica ainda mais evidente quando se analisa a situação dos operários contratados para trabalhar nas obras da Copa do Mundo.
Condições de trabalho desumanas
Os prédios gigantescos e as construções imponentes são símbolos da opulência do atual Catar. Porém, foi a força de trabalho estrangeira a responsável por colocar essas obras em pé – o que levou a uma característica curiosa: pessoas nascidas em território catari são minoria em seu próprio país. Para o torneio, não foi diferente: trabalhadores de países como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka foram trazidos para atuar sob condições degradantes.
Em 2016, a Anistia Internacional acusou o Catar de usar trabalho forçado e fornecer acomodações precárias. Um relatório da Human Rights Watch, de 2021, apontou práticas como jornadas exaustivas, falta de pagamento e deduções ilegais de salários. O principal alvo das críticas é o sistema “kafala”, por meio do qual os empregadores patrocinam os funcionários estrangeiros e detêm poderes abusivos sobre eles, como impedi-los de deixar o país ou buscar emprego em outros locais.

“Deus sabe que há dias em que não posso continuar, tudo se torna demais para mim. A única coisa que me mantém vivo é pensar em meus filhos”, contou um trabalhador chamado Sakib à Anistia Internacional. Natural de Bangladesh, ele pegou um empréstimo de 4 mil dólares para pagar um recrutador e ser contratado como jardineiro em uma das obras da Copa do Mundo. O caso de Sakib expõe outra forma de abuso: agentes cobram altos valores para levar pessoas pobres para trabalhar no Catar.
Outro depoimento dado à entidade ilustra essa situação. “Não sabemos o que fazer. Não temos permissão de residência, estamos aqui ilegalmente. Nosso empregador pode fugir a qualquer momento. Estamos para completar sete meses sem salário. Eu, pessoalmente, estou bem, mas e minhas crianças? Meu filho mais velho está em casa e não pode ir à escola”, contou um imigrante identificado como Daniel.
A denúncia mais grave foi feita pelo The Guardian. De acordo com investigação feita pelo jornal britânico, cerca de 6,5 mil trabalhadores morreram no Catar desde que o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo – número que pode ser ainda maior, por conta da subnotificação. Como muitos desses casos foram classificados como morte natural, não se sabe ao certo suas causas, mas um dos principais fatores apontados é a exposição às altas temperaturas.

Em agosto de 2022, trabalhadores foram às ruas protestar contra atrasos de até sete meses em seus pagamentos. O governo catari deteve cerca de 60 deles e deportou alguns. “Conversamos com trabalhadores que se manifestaram e com um deles que foi expulso para o Nepal. Confirmamos que ele havia retornado ao seu país e que outros do Nepal, Bangladesh, Índia, Egito e Filipinas também foram expulsos”, afirmou o diretor-executivo da Equidem, consultoria focada em direitos humanos e trabalhistas, à Agência France-Presse.
O comitê organizador local, por sua vez, contestou as “afirmações imprecisas” e reconheceu apenas 39 óbitos de trabalhadores das obras da Copa – sendo que só três deles teriam relação direta com as construções. As autoridades cataris também afirmam ter abolido a kafala e realizado reformas para ampliar os direitos dos trabalhadores.
“Há décadas, o Oriente Médio sofre discriminação. Eu acho que isso acontece porque as pessoas não nos conhecem e, em alguns casos, se recusam a nos conhecer”, afirmou o Xeque Tamim bin Hamad Al Thani, atual emir do Catar, durante o Fórum Econômico Mundial. “Estamos constantemente tentando melhorar, e estamos cheios de esperança no futuro. Também estamos orgulhosos do nosso desenvolvimento, das reformas e do progresso que fizemos. E somos gratos pelo holofote que a Copa do Mundo proporcionou”.

Em artigo publicado no Middle East Monitor, Zarqa Parvez, professora da Universidade Georgetown, do Catar, também rebateu as críticas feitas por organizações ocidentais. Segundo ela, essas organizações ignoram o “fato de que outros países onde o torneio foi sediado anteriormente, além de sua história violenta de exploração colonial, viram um aumento constante da islamofobia, política de supremacia branca, crimes racistas […], todos os quais comprometem a segurança de grupos minoritários”. As acusações seriam uma forma de argumentar que o país não é “culturalmente, intelectualmente e legalmente pronto para sediar a Copa do Mundo”.
Gianni Infantino, presidente da Fifa, também defendeu o país-sede. “Levou centenas de anos para nós, na Europa, chegar onde estamos hoje. Nesta parte do mundo, no Catar, isso tem sido feito em poucos anos, então está claro que, no começo, nós precisamos de algum tempo para avaliar”, disse o dirigente. No entanto, essas mudanças não foram completamente estabelecidas e não tiveram resultado anunciado, segundo apontam observadores.
Investimentos milionários e suspeitas de corrupção
Com todos os motivos para não sediar uma Copa do Mundo, como o Catar conseguiu os votos necessários para vencer concorrentes como Estados Unidos, Austrália e Japão? Para começar, alguns desses motivos se tornaram trunfos diante dos objetivos dos membros do Comitê Executivo da Fifa. Um país não democrático, em que um grupo controla toda a política e suprime qualquer oposição, é até preferível, segundo disse Jérôme Valcke, em 2013, quando era secretário-geral da federação.
“Eu vou dizer algo que parece louco, mas menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa do Mundo. Quando você tem um chefe de Estado forte que pode decidir, como talvez [o presidente da Rússia, Vladimir] Putin possa fazer em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”, afirmou Valcke.
Sobre a falta de tradição do Catar no futebol, a Fifa vê essa característica de outra maneira: um local “inexplorado” onde pode popularizar o esporte e expandir mercados. E não apenas nesse país, mas também em seus vizinhos, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Kuwait, Iêmen, Omã, entre outros.

Além disso, se falta tradição dentro de campo, o Catar soube jogar muito bem fora dele. Com uma das maiores reservas de petróleo e gás natural do mundo, o país ostenta o maior PIB per capita do mundo e vastos recursos para investir em suas empreitadas. Segundo o The Guardian, o governo catari gastou quase 200 milhões de dólares na disputa pela Copa do Mundo. Para efeito de comparação, a Austrália despendeu 42,7 milhões, enquanto os Estados Unidos menos de 5 milhões de dólares.
O lobby – ou seja, a pressão nos bastidores – também foi muito bem feito. Nesse campo, o nome principal é o de Mohammed Bin Hammam, ex-presidente da Confederação Asiática de Futebol (AFC) e ex-membro da Fifa. Sua desistência da tentativa de ser presidente da organização, em 2010, é apontada como manobra para conseguir o apoio de Blatter, seu adversário no pleito, à candidatura catari. Em outra jogada certeira, o Catar patrocinou o congresso da Confederação Africana de Futebol, a fim de ter votos dos executivos desse continente.
Essas práticas, apesar de questionáveis, não configuram crime nem são proibidas pelo estatuto da Fifa. Isso não significa, porém, que não existam suspeitas mais graves nessa história. De acordo com uma investigação do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, representantes da Rússia e do Catar subornaram executivos da Fifa para obter votos nas eleições que deram aos dois países o direito de sediar a Copa do Mundo.

Três dirigentes da América do Sul teriam recebido dinheiro em troca de seu apoio: Julio Grondona, Nicolás Leoz e Ricardo Teixeira, que presidiram a Associação do Futebol Argentino (AFA), a Conmebol e a CBF, respectivamente. O Catar, por sua vez, negou ter cometido irregularidades na disputa.
Essas acusações, junto dos numerosos escândalos de corrupção que atingiram a Fifa nos últimos anos, fizeram a entidade mudar a forma como são definidas as sedes da Copa do Mundo. Ao invés de membros do Comitê Executivo (que foi substituído por outro órgão em 2016), os 211 países filiados à Fifa passaram a fazer essa escolha, por meio de votos abertos. Nesse novo formato, a candidatura conjunta de Estados Unidos, Canadá e México venceu o pleito para a edição de 2026.
Pressão por todos os lados
Diante de todos esses problemas, o Catar se tornou alvo do Ocidente. Imprensa, organizações em defesa dos direitos humanos e diversos atores do mundo do futebol fizeram protestos e tentaram promover boicotes à participação na Copa do Mundo.
Em um dos episódios mais famosos, os jogadores da seleção alemã vestiram camisas com letras que formavam as palavras “human rights” (direitos humanos, em inglês), antes de uma partida contra a Islândia. Segundo um dirigente da Federação Alemã de Futebol, a iniciativa partiu dos próprios atletas. No dia anterior, o time da Noruega também usou mensagens em suas camisas para protestar.

Na Holanda, um grupo de parlamentares chegou a defender que a seleção deixasse de ir à Copa. Obviamente, essa ideia não foi à frente, mas uma moção da deputada Sadet Karabulut, do Partido Socialista, para que nenhuma autoridade do país vá ao Catar durante o torneio foi aprovada.
A pressão veio também por parte de empresas. O ING Group, patrocinador das seleções belga e holandesa, desistiu de promover ações de marketing na Copa do Mundo. A GLS, que presta serviços de encomendas e também patrocina a Bélgica, não fará promoções ou campanhas publicitárias por considerar que isso não seria apropriado “no contexto da situação dos direitos humanos” no Catar.
Ex-jogadores também se posicionaram contra os abusos sofridos pelos trabalhadores. O alemão Philipp Lahm, por exemplo, descartou a hipótese de acompanhar os jogos pessoalmente. “Não faço parte da delegação e não quero ir como um torcedor. Prefiro acompanhar o torneio de casa. Os direitos humanos devem desempenhar um papel maior na atribuição de uma competição”, disse o ex-lateral campeão do mundo em 2014.
Pelos mesmos motivos, Gary Lineker recusou o convite para participar do sorteio que definiu os grupos do torneio, apesar de confirmar que irá ao torneio como comentarista. O ídolo do futebol inglês é um crítico frequente da corrupção na Fifa, à qual ele atribui a escolha do país da Península Árabe como sede. “Nós sabemos que foi uma candidatura corrupta. Eu apoio a Copa no Catar? Não, porque eles tratam muitos direitos fundamentais de forma errada. Mas eu estarei lá pela BBC”, afirmou ele sobre a escolha.

Além das críticas e boicotes, existem ameaças que podem se concretizar em danos à Fifa. Em 2016, um jovem bengali, com a ajuda de organizações em defesa de direitos trabalhistas, processou a entidade pela existência de trabalho escravo nas obras da Copa do Mundo. A corte suíça que julgou o caso, porém, rejeitou a acusação por conta de “razões formais” e inconsistências na acusação.
Em maio de 2022, um grupo formado por diversas entidades – Anistia Internacional, Human Rights Watch, Football Supporters Europe e Federação Internacional de Trabalhadores – enviou uma carta a Gianni Infantino cobrando uma indenização por parte da Fifa aos trabalhadores imigrantes no Catar. O valor pedido é alto: 440 milhões de dólares, equivalente a 2,1 bilhões de reais.
Se essas ações ainda não resultaram em prejuízos financeiros à Fifa e ao Catar, o mesmo não pode ser dito sobre a imagem de ambos. Não à toa, o governo catari promoveu mudanças em sua legislação trabalhista e promete receber bem os visitantes homossexuais – apesar de esse compromisso não ter se tornado realidade até o momento. A entidade, por sua vez, colocou o tema direitos humanos como prioridade para a Copa de 2026. Com o apoio da ONU, ela desenvolveu nova lista de princípios e requisitos com os quais as cidades-sede foram obrigadas a se comprometer.
Os olhos que não enxergam
Diante das manifestações, ações e boicotes citados nos parágrafos anteriores, o título desta matéria pode soar contraditório. Afinal, tem muita gente que se importa, sim, com as violações de direitos humanos e as contradições da Copa do Mundo no Catar. O ponto aqui, porém, é outro: por que nós, torcedores e espectadores, sabendo de tudo isso, vamos assistir ao torneio sem peso na consciência? Por que não existem – com poucas e pequenas exceções – movimentos de boicote ao evento?
Por mais que a edição deste ano seja, provavelmente, a mais questionada e criticada da história, isso não deve afetar em nada a audiência. Gianni Infantino prevê que 5 bilhões de pessoas assistirão às partidas ao redor do planeta, bem mais do que as 3,5 bilhões da Copa na Rússia. Para o período 2019-2022, a Fifa espera uma receita de 6,56 bilhões de dólares, com 400 milhões de dólares a mais em marketing e vendas de direitos televisivos, comparando com quatro anos atrás. A menos de 100 dias para a abertura, já foram vendidos quase 2,5 milhões de ingressos.

O primeiro motivo para a falta de boicotes relevantes é a expectativa sobre os resultados de tal movimento. Pensando individualmente, mesmo quem tem uma preocupação genuína com direitos humanos sabe que deixar de assistir aos jogos dificilmente faria alguma diferença – ainda mais agora, faltando poucas semanas para o início da Copa, quando a maior parte das obras (e dos abusos) já foi feita. O incentivo para abrir mão de acompanhar um evento esperado por quatro anos diminui conforme os custos de tal atitude superam os benefícios esperados.
Essa falta de perspectiva, que se dá de forma individual, atinge também a esfera coletiva. Um boicote é uma atitude interdependente, isto é, que depende das ações de outras pessoas e da coordenação entre elas. A expectativa em relação à adesão de outros membros da comunidade faz toda a diferença nesse contexto. Em relação à Copa, poucos imaginam ser viável um movimento que convença muitos indivíduos a não assistirem aos jogos. Assim, não aparecem propostas coletivas de boicote, o que reforça a posição individual, e vice-versa.
Uma forma de coordenar uma ação coletiva seria pelo posicionamento de lideranças ou personalidades com grande influência. Porém, nenhum ídolo do futebol se posicionou a favor de um boicote às partidas do evento, com uma exceção. Eric Cantona, ídolo do Manchester United, sempre ligado aos temas sociais e políticos (como o Futebocracia mostrou aqui), declarou que não vai assistir às partidas da Copa do Mundo deste ano. “É apenas sobre dinheiro, e o modo como eles trataram as pessoas que construíram os estádios é horrível. Milhares morreram. Pessoalmente, eu não vou assistir”, disse ele ao jornal Daily Mail.
Em artigo publicado no site Versus, o escritor Martyn Ewoma faz um contraponto a essa avaliação baseada nas expectativas de resultados. Ele afirma que não vai assistir aos jogos por uma questão de princípios, independentemente de sua decisão trazer um resultado real. Segundo ele, essa é uma decisão mais fácil do que se tornar vegetariano ou não comprar roupas feitas por trabalho análogo à escravidão, uma vez que o futebol, diferentemente de alimentação ou vestimenta, não é uma necessidade básica. Ainda assim, movimentos em defesa dos animais ou contra abusos na produção de roupas passaram por décadas de amadurecimento até se tornarem significativos na sociedade – no caso da Copa no Catar, não houve tempo para isso.
Uma segunda explicação é um fenômeno que a psicologia chama de “teoria do nível de construção”. Segundo ela, nós temos percepções diferentes de eventos que acontecem a grande distância (física, temporal ou social) daqueles que se dão mais perto. Apesar do contato com as notícias, o sofrimento dos trabalhadores no Catar é algo mais abstrato do que, por exemplo, abusos que acontecem em nossa cidade ou nosso bairro.
“Não conseguimos entender e sentir empatia em relação ao que é muito distante. É algo que vem desde os nossos ancestrais. Tem a questão do indivíduo, da empatia, da identificação. É uma coisa que não fala diretamente comigo, sobre as minhas questões, as minhas dores. É sempre o outro”, explica Elaine Passos, psicóloga especialista em direitos humanos e educação ético-racial. À primeira vista, indianos, paquistaneses, nepaleses e cingaleses parecem diferentes demais para quem vive em realidades muito diferentes. Isso explica, em partes, por que as manifestações de europeus contra a guerra na Ucrânia são maiores do que conflitos igualmente graves na África, por exemplo.

Por mais que essa falta de empatia em relação às pessoas mais distantes soe como egoísmo, ela faz parte do funcionamento da mente humana. Afinal, o cérebro humano se desenvolveu ao longo de milhares de anos, durante os quais os indivíduos viviam em pequenos grupos, de cerca de cem pessoas, quase sempre formados pela família e pela família estendida. Por conta disso, inclusive, especialistas defendem que nossa capacidade de sentir empatia se dissolve quando se trata do sofrimento vivenciado por milhares ou milhões de pessoas.
Outra possível razão para a falta de atitude por parte dos torcedores é a normalização das violações de direitos humanos em determinados locais do mundo. De forma consciente ou não, certos eventos nos causam menos indignação quando acontecem em um lugar ou contexto no qual já são esperados. O uso de trabalho escravo ou análogo à escravidão é uma prática antiga nos países do Golfo Pérsico, datando de milhares de anos. Mesmo quem não conhece esse fato sabe, ao menos, que onde o islamismo é a religião de Estado o tratamento a mulheres e homossexuais é diferente daquele das democracias liberais. Colocando em uma frase, seria como dizer: “nesses lugares, é assim mesmo”.
“Não conseguimos entender e sentir empatia em relação ao que é muito distante. É uma coisa que não fala diretamente comigo, sobre as minhas questões, as minhas dores. É sempre o outro”
Elaine Passos, psicóloga
Essa normalização se estende aos eventos relacionados à própria Copa do Mundo. A edição 2022, ainda que envolva casos mais graves que qualquer outra, não será a primeira relacionada a corrupção e desrespeito a direitos humanos. Nós, brasileiros, sabemos bem disso: a Copa de 2014 disputada em nosso país foi marcada por abusos nas remoções de pessoas que viviam nos locais das obras e suspeitas de irregularidades na construção dos estádios. Quando se pensa em escolher uma ditadura como sede, é preciso lembrar que a Rússia foi a escolhida para 2018, a despeito de Vladimir Putin ser virtualmente um ditador.
Por fim, temos toda a emoção que o futebol e a Copa do Mundo despertam. “O futebol fala muito de emoção. É outra perspectiva, pois ela vem na frente [da razão]. Assim, as pessoas não conseguem reparar nisso, como no caso do vegetarianismo, pois nesse caso conseguimos elaborar [racionalmente]”, afirma Elaine Passos.
Seja por falta de expectativas de resultados, ausência de coordenação coletiva, limites da empatia ou normalização de abusos em eventos esportivos, parece inevitável que a Copa no Catar seja o sucesso que a Fifa espera. Afinal, bilhões de pessoas ao redor do mundo esperaram mais de quatro anos para ver os melhores jogadores atuando por suas seleções. Que o barulho feito em torno dos crimes cometidos nos bastidores do evento sirva, ao menos, para que eles nunca mais se repitam – e nós possamos assistir aos jogos sem necessidade de refletir se essa é uma atitude correta.

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