Richarlison ajoelhado antes de jogo pelo Everton, em manifestação contra o racismo

Atuação política e posicionamentos firmes: Richarlison se torna contraponto a Neymar na Seleção

Por Luiz Vendramin Andreassa

Richarlison de Andrade é uma figura complexa. Quem o conheceu pela “dança do pombo”, sua comemoração característica, pode ter imaginado que se trata de mais um representante da geração de jogadores que abraçam a futilidade e vivem em um mundo à parte. Nada poderia ser mais enganoso: o camisa 9 da Seleção Brasileira na Copa do Mundo tem opiniões e atitudes que lhe colocam como importante figura política.

Não que Richarlison defenda claramente um partido ou político específico. Diferentemente de alguns colegas e amigos, como Neymar, que fez campanha por Jair Bolsonaro na eleição presidencial deste ano, o atacante do Tottenham não se posicionou publicamente sobre a disputa. Ao invés disso, ele prefere abraçar causas e atuar longe da política eleitoral.

“Se você tem a chance de fazer a diferença na vida de alguém, não pense duas vezes”, disse ele em 2019, durante jogo beneficente que coletou 6,4 toneladas de alimentos para Nova Venécia, no Espírito Santo, onde nasceu. Naquele mesmo ano, ele doou quase 50 mil reais para estudantes da cidade irem a Taiwan disputar a Olimpíada Internacional de Matemática.

Apesar de não fazer muito alarde sobre suas ações filantrópicas, Richarlison recentemente contou ao repórter João Castelo-Branco, da ESPN, que doa 10% de seu salário a uma instituição que ajuda o Hospital de Amor, de Barretos, a atender pacientes com câncer. A motivação veio depois que uma pessoa querida, a qual considera uma segunda mãe, teve de tratar a doença em 2017.

Pé firme nas divididas

A filantropia não é novidade entre jogadores de futebol: vários deles têm até mesmo seus próprios institutos, como é o caso de Neymar e Vinícius Jr. É uma forma louvável de ajudar pessoas em vulnerabilidade, mas não é um ato político em si. No entanto, Richarlison vai além: ele costuma se manifestar sobre temas espinhosos, mostrando um posicionamento político firme e bem definido.

Em suas redes sociais, já criticou a violência contra pessoas negras no Brasil e no mundo. Com um post, mostrou indignação com o assassinato de João Alberto Silveira, conhecido como Nego Beto, por um segurança e um policial militar fora de serviço em Porto Alegre. O caso aconteceu em 19 de novembro de 2020, na véspera do Dia da Consciência Negra. “Parece que a gente não tem saída… Nem no Dia da Consciência Negra. Aliás, que consciência? Mataram um homem negro espancado na frente das câmeras”, escreveu.

Naquele mesmo ano, Richarlison publicou uma ilustração que juntava os rostos de George Floyd e do adolescente João Pedro. Floyd foi estrangulado e morto pelo policial branco Derek Chauvin em Minneapolis, Estados Unidos, e seu caso deu origem a protestos pelo mundo todo. João Pedro, por sua vez, foi baleado dentro de sua própria casa em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, durante uma ação policial. Ambos viraram símbolos da luta antirrascista.

“O racismo é um assunto que nós, que viemos da favela, estamos acostumados. Sempre fui tratado de forma diferente. Poderia ser comigo. Lá atrás, convivi com tiroteios e fui até confundido com traficante”, declarou à revista Placar. Além disso, ele apoiou os protestos que aconteceram nos Estados Unidos. “As pessoas que estão nas ruas estão no direito delas de protestar e pedir justiça. Se estivesse lá, faria o mesmo.”

O próprio Richarlison foi vítima de racismo em episódio recente. Durante amistoso entre Brasil e Tunísia no final de setembro, ele comemorava seu gol, o primeiro da goleada por 5 a 1, quando uma banana foi arremessada em sua direção. “Espero que possam reconhecer essa pessoa que jogou a banana. E que possa ser punida e a punição sirva de exemplo para que não possa acontecer mais, ainda mais dentro de um estádio”, disse ele, ainda no Parque dos Príncipes, em Paris.

A pandemia de Covid-19 é outro assunto do qual Richarlison não fugiu. Enquanto outros jogadores davam maus exemplos e participavam de festas e aglomerações – Gabriel Barbosa embaixo da mesa é um dos casos célebres -, ele se tornou embaixador de uma campanha da Universidade de São Paulo para financiar pesquisas contra a doença. Em artigo para o site The Players’ Tribune, também incentivou as pessoas a se vacinarem.

A vacina é SUA, um direito seu. Não desperdice essa oportunidade. Além de se proteger, você vai ajudar a proteger quem você ama, sua família, seus amigos e todo mundo à sua volta. Faça isso pelos cientistas e profissionais da saúde. Por todos que não tiveram a mesma chance.
Richarlison, em artigo no The Players’ Tribune

Em visita ao Pantanal para divulgar a camisa da Seleção Brasileira que será usada na Copa do Mundo, Richarlison adotou outra bandeira. Ele assumiu os gastos do cuidado de uma onça chamada Acerola e passou a defender a preservação do meio ambiente. “Quando houve as queimadas, foi algo que me tocou muito, porque me lembrei dos dias que passei por lá, da aldeia que visitei. Aquilo lá é um paraíso e nunca deveria sofrer com queimadas, especialmente criminosas”, disse ele em entrevista ao Ecoa, do portal UOL.

E, se ficou neutro em relação às eleições de 2022 que mobilizaram o Brasil, Richarlison deu sua opinião sobre um tema sensível relacionado a ela: o uso da camisa da Seleção pelos eleitores de Jair Bolsonaro. “Hoje em dia, o pessoal leva muito para o lado político. Isso faz a gente perder a identidade da camisa e da bandeira amarela. Acho importante que eu, como jogador, torcedor e brasileiro, tente levar essa identificação para todo o mundo”, comentou.

Richarlison tomando a vacina contra a Covid-19
Dando o exemplo: Richarlison usou sua visibilidade para incentivar a vacinação e a pesquisa científica durante a pandemia. (créditos: reprodução/Instagram)

O voo do pombo

À primeira vista, a história de Richarlison não é muito diferente daquelas de tantos outros jogadores brasileiros: uma infância pobre e de poucas oportunidades que foi transformada pelo futebol. Enquanto vivia em Nova Venécia, ele teve de vender picolés e trabalhar em um lava-jato para ajudar no sustento da família. O tráfico de drogas e a violência estavam presentes em sua rotina. “Tinha muito crime e muita droga no meu bairro, e alguns dos meus amigos estavam envolvidos”, contou ele em outro texto para o The Players’ Tribune.

Richarlison não se adaptou a esses empregos e manteve viva a vontade de se tornar jogador profissional. Vontade que ficou ainda maior depois de um episódio que marcou sua vida. Ainda criança, ele foi pescar com o pai e alguns amigos. Ao jogar o anzol em uma represa em que a prática era proibida, o dono do local apareceu e, furioso, fez ameaças e humilhou seu pai. “Antes daquilo, ajudar a minha família por meio do futebol era uma ideia. Depois, virou obsessão”, contou.

O atacante fez testes em diversos clubes e viveu frustrações até o final de 2014, quando, após bom desempenho no pequeno Real Noroeste, foi contratado pelo América-MG. Pouco depois, ele assinou seu primeiro contrato de patrocínio com a Nike. Durante um treino, chegou um carregamento de materiais com seu nome. O que Richarlison fez com tudo isso? Doou a pessoas em condição de rua no centro de Belo Horizonte. “Ele deu tudo, inclusive sua mala”, relatou Guilherme Xavier, seu amigo à época, ao site The Athletic.

Richarlison em frente a um carro
Richarlison ascendeu socialmente por meio do futebol, mas sempre lembra de sua infância pobre em Nova Venécia, no Espírito Santo. (créditos: reprodução/Instagram)

Outros depoimentos dessa matéria ajudam a traçar as características pessoais que compõem o Richarlison que conhecemos hoje. Uma delas é a timidez. Carlos Cruz, assessor de imprensa do América-MG, lembra das dificuldades com as entrevistas. “Era difícil conseguir uma frase completa dele. Eu tentava fazer alguns exercícios com ele, explicar a importância das entrevistas, mas ele literalmente se escondia quando eu queria que ele participasse de uma”, disse o profissional.

A simplicidade é outro aspecto marcante da personalidade de Richarlison. Quando se mudou para o Rio de Janeiro para defender o Fluminense, ele não foi morar em algum dos bairros nobres que costumam ser escolhidos pelos jogadores, como Barra da Tijuca, Leblon e Ipanema. Sua escolha foi o Tanque, em Jacarepaguá. “Aqui é o meu cantinho. É tudo calmo e simples por aqui. A ideia era me adaptar mais rápido, ficar mais afastado do ‘burburinho’, sentir menos a cidade grande”, disse ele em entrevista ao site GE.

A timidez e a simplicidade, porém, não foram empecilhos em sua rápida ascensão no futebol profissional. Em pouco tempo, ele teve sua primeira chance no time profissional do Coelho. Seu desempenho na temporada 2015 o levou ao Fluminense, onde foi treinado por Abel Braga. “Ele é espetacular. O tipo de pessoa que parece ter sido desenhada de um jeito diferente pelo cara lá do céu. Eu fico emocionado só de falar dele”, afirmou o técnico.

Em 2017, Richarlison foi comprado pelo pequeno Watford, da Inglaterra. Seu crescimento continuou meteórico: um ano depois, chegou ao Everton, onde seguiu chamando a atenção dos rivais, até ser contratado pelo Tottenham para a temporada 2022-2033. Foi na equipe de Londres que ele realizou o sonho de jogar a Liga dos Campeões, sendo importante para a dramática classificação de sua equipe às oitavas de final.

Na Seleção Brasileira, a trajetória também tem mantido um ritmo alucinante. Convocado pela primeira vez em 2018, ele foi se estabelecendo como peça insubstituível da equipe de Tite. Nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021, foi o grande nome da conquista da medalha de ouro e artilheiro da competição. Agora, ele chega à Copa do Mundo com a camisa 9 de Ronaldo e status de centroavante titular.

No entanto, nem só de crescimento profissional e ações sociais é feita a carreira de Richarlison. Quando jogava pelo Fluminense, ele viveu um de seus momentos mais controversos. O Palmeiras, à procura de um atacante de referência, avançava pela sua contratação, e ele pediu para não ser escalado em partida contra o possível novo clube. A repercussão, como é de se imaginar, foi bastante negativa. A diretoria tricolor encerrou as negociações e, no dia seguinte, o jogador pediu desculpas a Abel Braga, que entendeu seu lado. “Quem nunca fez algo idiota quando era criança?”.

Sem rótulos ou classificações

Apesar de Richarlison nunca ter declarado publicamente seu posicionamento político ou defendido algum candidato, é possível inferir o que ele pensa por meio das causas que adota. O combate ao racismo e a preservação do meio ambiente são pautas consideradas progressistas, bem distantes daquelas defendidas por colegas de Seleção, por exemplo. Thiago Silva, Daniel Alves, Neymar: dos poucos jogadores brasileiros da atualidade que se posicionaram politicamente, quase todos se colocaram ao lado de Jair Bolsonaro.

Diferentemente deles, Richarlison não discursou, até hoje, em defesa de valores como pátria, família e religião (cristã), pautas caras ao bolsonarismo e a outros movimentos de extrema direita pelo mundo. Isso não significa, por outro lado, que ele se oponha ao atual presidente ou que tenha votado em Lula, seu adversário na eleição.

Neymar e Richarlison são amigos e companheiros na Seleção Brasileira, mas têm posicionamentos políticos diferentes
Amigos e colegas de Seleção, Neymar e Richarlison têm relações muito diferentes com a política. (créditos: reprodução/Instagram)

“Não me considero um cara politizado no sentido que alguns tentam colocar, só me conscientizei do que eu posso fazer, até onde a minha voz pode chegar e quem eu quero ajudar”, declarou à matéria do Ecoa UOL, dando pistas da forma como enxerga sua própria atuação. “Quando a gente fala de política também, apesar de ser errado esse pensamento, sempre vem na cabeça aquele cara que quer ganhar algo em troca daquilo que faz”.

Ainda assim, Richarlison tem se tornado uma referência para os torcedores que não se identificam com o discurso bolsonarista de seus colegas na Seleção. E tem mostrado a diferença entre manifestação política e eleitoral, como observou o jornalista Ricardo Perrone. Segundo ele, Neymar “tem posicionamento eleitoral, porque, além de ser feito em período de campanha, defende mais um candidato do que ideias”. O centroavante, por sua vez, “costuma se manifestar sobre questões relevantes para o país” fora dos momentos de disputa eleitoral.

Nesse sentido, o “pombo” se tornou um contraponto ao astro do PSG, mesmo que involuntariamente. Quem se revoltou com as manifestações da ala bolsonarista do elenco que vai buscar o hexacampeonato pode direcionar sua torcida ao camisa 9 da vez. Um jovem que não declara voto em eleições, mas que defende suas causas como poucos de sua profissão têm coragem de fazer.

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