Por Daniel Rebelo Fideli
É possível analisar a História do século XX sem relacioná-la à Copa do Mundo, mas não seria isso um desperdício? Como não falar de história e política em um jogo como Suíça e Sérvia, por exemplo? “É só futebol, não devemos misturar com política” – você certamente ouviu ou leu essa frase em tempos recentes. Justamente em tempos em que o discurso político, veja só, está cada vez mais próximo de uma verdadeira dicotomia futebolística. Soa contraditório, no mínimo.
A verdade é que o futebol, especialmente através de seu maior evento – a Copa do Mundo – acompanha em paralelo, e muitas vezes intrinsecamente, os principais acontecimentos políticos e sociais do planeta Terra em quase um século de história. Possivelmente, a intersecção mais notória desse período tenha se dado entre 1942 e 1946, quando duas Copas do Mundo foram canceladas por conta de um mundo em Guerra.
Entre 1930, quando foi disputada a primeira edição do torneio, no Uruguai, e 2022, com a realização da competição no Catar, são incontáveis as oportunidades em que conflitos externos ao futebol se misturaram em disputas vividas e combatidas com a bola nos pés. Como não lembrar do histórico embate entre Argentina e Inglaterra na Copa de 1986, em que a “mão de Deus” de Diego Maradona vingou os sul-americanos da derrota nas Malvinas? Futebol, sim, se mistura com política. É inevitável.

Em 2022, o Catar será palco de mais um episódio para ficar marcado na história de dois países que possuem laços bastante complexos, especialmente desde meados dos anos 1990. Neste 2 de dezembro, Suíça e Sérvia duelam – ou duelaram, dependendo de quando você está lendo este texto – pela 3ª rodada do Grupo G da Copa do Mundo. Um confronto que já ocorreu na Copa da Rússia, em 2018, e se repete em Doha como se nos quisesse lembrar de algo mais. Nos lembrar que o futebol vive fora das quatro linhas.
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Uma águia, duas cabeças
Para explicar melhor a importância desse Suíça X Sérvia é necessário voltar alguns passos na linha do tempo. Em 1998, ano da Copa do Mundo na França, se estabeleceu o que alguns historiadores chamam de Guerra do Kosovo. Um conflito que começou entre a então Iugoslávia, comandada pelo presidente Slobodan Milošević, e o Exército de Libertação do Kosovo (ELK), uma guerrilha formada por integrantes de origem étnica albanesa e que tinha como objetivo conseguir a independência da região do Kosovo.
A Iugoslávia, que após a 2ª Guerra Mundial unia seis repúblicas – Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Sérvia – vivia um momento de desintegração desde 1991, quando Croácia e Eslovênia declararam independência e realizaram eleições presidenciais. Seguiram-se a Macedônia e a Bósnia e Herzegovina, esta última após um conflito de proporções catastróficas que matou mais de 100 mil pessoas. No caso do Kosovo, uma província sob domínio iuguslavo, aproximadamente 90% da população era de origem albanesa e o desejo pela independência se intensificava, até culminar na Guerra em 1998.

Em meio a essa luta armada, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) convocou uma conferência entre as lideranças envolvidas no conflito, além de outros representantes de algumas das principais nações mundiais. Realizada na França, a Conferência de Rambouillet tinha como objetivo estabelecer um tratado de paz entre a Iugoslávia e o Kosovo. Entretanto, a ideia fracassou. Como consequência, a Iugoslávia foi atacada por forças da OTAN em 24 de março de 1999.
Aproximadamente três meses após os ataques, Milošević se rendeu e assinou um acordo de paz. Apenas em 2008, entretanto, o Kosovo anunciaria sua independência unilateral, reconhecida pelos Estados Unidos e alguns países da Europa. A guerra, além de óbvias perdas de vidas humanas, gerou um movimento migratório, tanto de sérvios, como de kosovares. Muitos desses kosovares encontraram refúgio na Suíça, entre eles, as famílias de Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri.
Suíça 2 x 1 Sérvia, junho de 2018
Em um roteiro de dar inveja ao mais previsível dos escritores, Suíça e Sérvia foram sorteadas para fazerem parte do Grupo E da Copa do Mundo da Rússia de 2018. Seria a oportunidade de um embate direto entre jogadores de origem albanesa contra os sérvios. Dentre eles, os citados Xhaka e Shaqiri. Duas das principais estrelas do time suíço e que, como mostrariam em campo depois, traziam consigo muito do sentimento criado após suas famílias deixarem a terra natal em função da Guerra do Kosovo.
No dia 22 de junho de 2018, Suíça e Sérvia entraram em campo no Estádio de Kaliningrado para colocar mais uma linha importante no livro de histórias da Copa, e do mundo. Os sérvios saíram na frente logo no começo da partida, com gol de Aleksandar Mitrovíc. A vantagem perduraria até os 7 minutos do 2º tempo de jogo, quando Xhaka acertou um chutaço de fora da área para empatar. Entretanto, se o gol havia chamado atenção pela beleza, a comemoração chamou ainda mais.
Com as mãos unidas pelos polegares e formando o desenho de duas asas, Xhaka ressaltou ao mundo que a potência de seu chute certeiro carregava o orgulho de sua origem. O símbolo, afinal, remetia à bandeira da Albânia, que tem uma águia preta de duas cabeças estampada em um fundo vermelho. Um clímax ainda maior viria pouco depois, quando, no último minuto do tempo regulamentar, Shaqiri, nascido no Kosovo, avançou pela esquerda e com um leve toque deslocou o goleiro para marcar o gol da vitória. A águia, novamente, voou em Kaliningrado.
A Fifa e as consequências
A Fifa, é claro, não gostou. Após a abertura de um processo disciplinar, onde se cogitou suspender os dois jogadores suíços do último jogo da 1ª fase da Copa, a entidade máxima do futebol decidiu apenas multar os dois atletas, incluindo também o lateral Stephan Lichtsteiner, que seguiu a comemoração dos colegas de seleção. Segue a nota:
Os jogadores suíços Granit Xhaka, Xherdan Shaqiri e Stephan Lichtsteiner foram punidos com multas de 10 mil francos suíços, 10 mil francos suíços e 5 mil francos suíços, respectivamente, e advertências por terem infringido o artigo 57 do Código Disciplinar da Fifa e apoiado comportamento contrário aos princípios do fair play durante as comemorações dos gols no jogo entre Suíça e Sérvia.
Em entrevista ao GloboEsporte.com (atual GE) após o jogo, Shaqiri se limitou a dizer que a comemoração foi “um momento de emoção no jogo”. Do outro lado, Aleksandar Kolarov, então lateral esquerdo da Roma e capitão da seleção sérvia, afirmou que “se querem comemorar assim, isso fala muito sobre eles”.
A Sérvia, por sua vez, também não saiu ilesa. Por conta do comportamento de seus torcedores, que expuseram cartazes com mensagens discriminatórias no jogo contra a Suíça, a Federação de Futebol da Sérvia foi multada em 54 mil francos suíços. Slaviša Kokeza, presidente da federação, e Mladen Krstajić, treinador da seleção da Sérvia, também foram multados em 5 mil francos suíços por críticas à arbitragem, com o último afirmando que os árbitros deveriam ir ao Tribunal de Haia para julgamento.

Shaqiri: a proibição de Belgrado
Poucos meses após ter causado um alvoroço por conta da comemoração do 2º gol da Suíça contra a Sérvia na Copa do Mundo da Rússia, Shaqiri foi novamente pivô de uma polêmica. Em 5 de novembro de 2018, Jürgen Klopp, técnico do Liverpool, o time em que o suíço jogava na época, veio a público para informar que o atleta não embarcaria com a delegação para a disputa de uma partida da 1ª fase da Liga dos Campeões contra o Estrela Vermelha, em Belgrado, na Sérvia.
“Queremos ser respeitosos e evitar distrações que tirem o foco do jogo. Por isso, ‘Shaq’ não está convocado. Ele aceita e entende a situação”, disse o treinador alemão. “Escutamos e lemos sobre especulações e conversas sobre o tipo de recepção que Shaq teria e não temos ideia do que pode acontecer. Queremos ir para lá e ficar 100% focados no futebol, sem precisar pensar em qualquer outra coisa. Somos o Liverpool, um grande clube, não temos outra mensagem que essa. Não temos mensagem política“.
Os Reds perderam a partida por 2×0.

Shaqiri (de novo) e o agasalho
Se você achou que as polêmicas envolvendo Shaqiri haviam acabado, se enganou. Em 2021, após vitória da Suíça contra a Irlanda do Norte, valendo pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2022, o jogador concedia uma entrevista quando um torcedor invadiu o campo e colocou nele um casaco do ELK, o Exército de Libertação do Kosovo. Shaqiri riu e retirou o casaco, mas o secretário-geral da Federação Sérvia de Futebol, Jovan Surbatovic, exigiu da Fifa uma punição.
“Exigimos uma resposta imediata e as mais duras sanções contra Shaqiri por promover uma organização terrorista criminosa. A Federação da Sérvia irá usar todos os mecanismos legais ao seu dispor para retirar os responsáveis deste episódio do futebol”, disse o dirigente.
Em nota, a Federação Suíça de Futebol defendeu o jogador. “É inaceitável que as pessoas abusem de uma entrevista pós-jogo para fazer propaganda política. Shaqiri comportou-se de forma exemplar, o culpado do episódio foi questionado pela polícia e foi imediatamente banido.”
Não houve punição por parte da Fifa.
2022: e agora?
A situação envolvendo o Kosovo e a Sérvia segue em constante alerta. Em 23 de novembro, porém, houve um acordo entre as lideranças dos dois países, com mediação da União Europeia, para evitar uma nova escalada de tensões. O mais recente problema envolvia placas de automóveis. O Kosovo exigia que sérvios que viviam em seu território trocassem as placas sérvias por novas emitidas em Pristina, capital do Kosovo. Segundo Josep Borrell, chefe de diplomacia da União Europeia, o acordo agora determina que a Sérvia pare de expedir placas de cidades kosovares, enquanto o Kosovo também “paralisará mais ações relacionadas com o novo emplacamento de veículos”.
Já no futebol, a tensão segue em alta. Na quinta-feira (24/11), quando a Sérvia enfrentou a Seleção Brasileira pela 1ª rodada do Grupo G da Copa do Mundo, imagens divulgadas na internet mostraram, dentro do vestiário sérvio decorado, uma bandeira com o mapa do Kosovo coberto pelas cores da bandeira Sérvia e com os dizeres “sem rendição” em albanês. O fato causou imediata revolta por parte de lideranças kosovares, com o ex-ministro de relações exteriores do Kosovo Petrit Selimi pedindo por punição pela Fifa.
“Sem política? A Fifa proíbe os times europeus de usarem a braçadeira One Love pelos direitos humanos. Mesmo assim, a Sérvia decorou seu vestiário com o mapa do Kosovo com a bandeira sérvia e uma frase de ‘sem rendição’. O Kosovo também é um membro da Fifa! Obsceno”, disparou Selimi.
Em meio a uma nova investigação da Fifa envolvendo um dos dois países, Suíça e Sérvia se enfrentam nesta sexta-feira pela derradeira rodada da 1ª fase da Copa do Mundo do Catar. Um confronto que pode decidir uma vaga nas oitavas de final da competição. O que acontecer até lá, durante e depois, porém, carrega muito mais do que uma disputa por um objetivo esportivo. No campo, dentro da rigidez das quatro linhas, sérvios, kosovares, suíços e albaneses lutarão por cada metro. Cada pequeno espaço. Como se fosse seu.
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Um comentário sobre “Suíça e Sérvia: entre armas e chuteiras, uma independência em jogo”