Por Luiz Vendramin Andreassa
A Copa do Mundo é o momento em que o futebol mais se aproxima da história e da política. Afinal, é nela que se enfrentam nações de todo o planeta, muitas das quais têm relações longas, tecidas ao longo dos séculos. De uma forma ou de outra, os ecos do passado ressoam nas disputas dentro do gramado, mesmo que a maioria dos jogadores e torcedores não perceba. É o caso de Portugal e Marrocos, que se enfrentam neste sábado pelas quartas de final.
Esse é um encontro que desafia estereótipos. Os mouros, vindos do território do atual Marrocos, ocuparam a Península Ibérica, onde hoje estão Espanha e Portugal, durante séculos. Sua influência resistiu ao tempo e chegou à cultura brasileira. Quer uma prova viva disso? Basta lembrar das centenas de palavras de origem árabe em nossa língua, como almanaque, almofada, esmeralda e papagaio. Aquelas que começam com “al”, artigo definido no árabe, quase sempre têm essa herança.
Mas não é o domínio dos mouros que vamos relacionar ao jogo entre portugueses e marroquinos – já falamos sobre ele antes de o time de Ziyech e Amrabat eliminar a Espanha nas oitavas de final. Como fazemos bastante aqui no Futebocracia, vamos pegar a máquina do tempo da história para entender como acontecimentos longínquos se entrelaçam com o que vemos em campo em 2022.
Um louco, um salvador
Quando Dom Sebastião nasceu, em 1554, foi considerado um salvador pela sociedade portuguesa. Seu pai, o príncipe João Manuel, falecera enquanto ele ainda estava na barriga de sua mãe, o que deixava o trono à mercê de um acordo com os espanhóis. Segundo ele, na ausência de um herdeiro de João Manuel, a coroa de Portugal seria passada a Carlos, seu primo e filho do rei Filipe II, da Espanha. Isso significava a união dos dois reinos e uma espécie de submissão aos vizinhos, algo que os lusos abominavam.

Sebastião foi coroado logo aos três anos de idade e, a partir de então, preparado para quando pudesse assumir o cargo na prática. Traumas de infância, doenças severas e a educação austera formaram um homem problemático: imprudente, inflexível, autoritário, de moral rígida. Sua grande ambição era impor o cristianismo aos povos muçulmanos, especialmente no norte da África.
A história lhe ofereceu aquilo que parecia a oportunidade certa para realizar seus planos. Mulei Mohammed, antigo rival de Portugal, assumiu como sultão do Marrocos em 1574, quando seu pai morreu. Porém, segundo as regras daquela dinastia, quem deveria ter sido agraciado era seu tio, Mulai Abdelmalek. Abdelmalek juntou combatentes para destronar o sobrinho e assumir seu lugar. Mohammed, então, resolveu pedir ajuda a D. Sebastião para recuperar o sultanato; em troca, lhe ofereceu o cargo de imperador do Marrocos, generosos pedaços do litoral e a permissão para implantar o cristianismo na região.
Como era de se esperar, D. Sebastião aceitou a oferta e começou a preparar a expedição. Ele juntou entre 15 mil e 23 mil homens, boa parte deles mal preparados ou mesmo não combatentes, e partiu de Lisboa em 24 de junho de 1578. O rei acreditava ter conhecimento inato e inquestionável para tomar todas as decisões importantes, e por isso não dava ouvidos aos alertas de aliados que contrariavam suas convicções – um traço de personalidade que lhe custaria caro.

As forças de Abdelmalek eram mais numerosas, com cerca de 50 mil homens, e possuíam arsenal de canhões mais bem localizados. O encontro aconteceu na cidade de Alcácer-Quibir (ou “al-qasr al-kebir”, “grande fortaleza” em árabe), a batalha que mudou o rumo da história de várias sociedades começou no dia 4 de agosto e durou apenas seis horas. Foi o tempo que os marroquinos precisaram para derrotar os adversários e encurralar D. Sebastião.
O rei de Portugal foi morto com um golpe de espada na cabeça. Seu corpo ficou com o fidalgo português Belchior do Amaral por alguns meses, depois foi levado à cidade de Ceuta (que hoje pertence à Espanha) e só chegou a Lisboa em 1582, quatro anos depois de sua morte.
O trauma e a negação
A derrota na Batalha de Alcácer-Quibir teve consequências devastadoras para Portugal. Segundo estimativas, 8 mil homens morreram e 16 mil se tornaram prisioneiros do inimigo. A maioria dos nobres foi resgatada por quantias altíssimas, enquanto outros foram feitos escravos ou se integraram à sociedade marroquina.
Mas o pior estava por vir. Henrique I, tio de D. Sebastião, assumiu seu lugar como rei e morreu menos de dois anos depois. O trono lusitano finalmente caiu no colo de Filipe II, dando início ao período de 60 anos em que o reino de Portugal perdeu sua independência e ficou submetido à Espanha. Essa mudança foi tão abrangente que afetou o Brasil: com a União Ibérica, os portugueses puderam avançar além dos limites do Tratado de Tordesilhas, de modo a ocupar o interior do nosso país. Nesse sentido, o revés teve resultados positivos.
“Se é vera a fama, aqui jaz Sebastião,
Vida nas plagas de África ceifada.
Não duvideis de que ele é vivo, não!
A morte deu-lhe vida ilimitada”
Inscrição na lápide de D. Sebastião, no Mosteiro dos Jerónimos
Ainda assim, as consequências da derrota foram tão traumáticas que, unidas à demora da chegada do corpo de D. Sebastião a Lisboa, criaram na sociedade portuguesa a esperança de que o rei não havia morrido. Ele teria, na verdade, fugido do campo de batalha para planejar uma volta triunfal a seu reino, garantindo sua independência e restabelecendo as glórias do passado. A esperança se transformou em mito, e o mito ganhou o nome de sebastianismo.
O sebastianismo se tornou uma cicatriz na sociedade portuguesa. Sempre que Portugal passava por maus momentos, voltava a expectativa pela vinda de um salvador. De tão forte, esse traço acabou chegando ao Brasil, que teve seus próprios mitos relacionados a D. Sebastião. Na comunidade de Canudos, já no fim do século XIX, Antônio Conselheiro pregava a volta do rei lusitano e o restabelecimento da monarquia em nosso país.
Somente com a Restauração, que em 1640 devolveu a Portugal a independência em relação à Espanha e conduziu D. João IV ao trono, o sebastianismo perdeu parte de seu apelo. Mesmo assim, ainda hoje se discute o mito do retorno do salvador e da volta aos tempos em que o país era uma potência mundial.
O sebastianismo na seleção portuguesa
No futebol, onde lendas, contos e fé são tão presentes quanto os jogadores que conduzem a bola, também há espaço para crenças como o sebastianismo. No caso da seleção de Portugal, o mito assumiu algumas características diferentes do movimento histórico. O salvador da pátria não desapareceu, mas se viu na obrigação de carregar sozinho o fardo de conduzir sua equipe em jornadas duras e ingratas.
Depois da aposentadoria da geração que levou os lusos à semifinal da Copa do Mundo de 2006, Cristiano Ronaldo ficou como o único fora de série entre seus compatriotas. Sem a companhia de craques como Figo, Deco e Rui Costa, o atacante estaria condenado a não brigar por títulos com a seleção, mesmo conquistando tudo que era possível pelos clubes.

Portugal viveu um período de entressafras em seu futebol. Na Copa do Mundo de 2010, caiu diante dos espanhóis nas oitavas de final; quatro anos depois, não passou da primeira fase; em 2018, perdeu para o Uruguai logo na primeira partida do mata-mata. Havia quem lamentasse o fato de Ronaldo ter nascido na Ilha da Madeira, e não nos recônditos do Brasil ou da Espanha.
A situação começou a mudar quando novos talentos surgiram na alvorada do horizonte lusitano. Ainda que sem a mesma admiração da geração dos anos 2000, mas com muita entrega e disciplina, a equipe que contava com Renato Sanches, João Mario e Éder levou Portugal à inédita conquista da Eurocopa em 2016, com direito a vitória sobre a França na casa do adversário.

Com a consolidação de nomes como Bruno Fernandes, Bernardo Silva, João Félix e Rafael Leão, a seleção portuguesa cresceu em qualidade na mesma medida em que Cristiano Ronaldo decaiu, naturalmente, por causa da idade. Passou a haver, enfim, protagonistas de grandes times europeus para dividir as responsabilidades – mas eles chegaram tarde demais.
Essa contradição se tornou mais clara do que nunca na Copa do Mundo no Catar. Longe de encantar ou de mostrar a capacidade de finalização de outrora, Ronaldo anotou apenas um gol na fase de grupos. Diante da Suíça, pelas oitavas de final, Fernando Santos optou por deixá-lo no banco de reservas, fato inédito em sua carreira nos mundiais. Uma decisão ousada que deu resultado: Portugal fez sua melhor exibição no torneio e Gonçalo Ramos, jovem substituto do camisa 7, marcou três gols.
Fotógrafos e jornalistas captaram a insatisfação do atacante no banco, que por sua vez não fez questão de escondê-la. Três dias depois, o jornal Record publicou que ele discutiu com o treinador e ameaçou deixar a Copa. A Federação Portuguesa de Futebol negou o acontecido e Cristiano postou, horas depois, uma mensagem de união na busca pelo troféu. De qualquer modo, seu momento é delicado: ele saiu brigado do Manchester United no fim de novembro, após entrevista na qual criticou o técnico e a diretoria do clube inglês.
Diante do Marrocos, Fernando Santos deve manter a aposta que deu certo contra a Suíça. O desafio promete ser muito complicado, uma vez que os Leões do Atlas já deixaram para trás as badaladas Bélgica, na fase de grupos, e a Espanha, nas oitavas de final. Ironicamente, a seleção portuguesa viu na saída de cena de seu D. Sebastião dos gramados a esperança de, quem sabe, conquistar o mundo.
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