Por Luiz Vendramin Andreassa
Para os marroquinos, a frase “futebol é mais do que um esporte” nunca foi uma afirmação vazia. Conforme sua seleção avança pela Copa do Mundo do Catar, o resto do planeta começa a entender o porquê. A festa de torcedores e jogadores do Marrocos após eliminar Portugal e Espanha mostra que há mais do que alegria pelas vitórias no campo – existe um sentimento mais profundo.
A cada passo dessa trajetória, marroquinos saíram para comemorar nas ruas de cidades europeias, como Bruxelas, Lisboa, Madri, Paris e Londres. Geralmente marginalizados por sua origem e religião, eles têm celebrado em público um orgulho abafado no dia a dia. Isso causou a reação de grupos de extrema-direita locais e focos de conflito.
Os jogadores, por sua vez, festejaram a vitória nos pênaltis sobre a Espanha cantando “o Saara é marroquino e o Rio é nosso”. Desde que se tornou independente, o Marrocos tenta tomar o controle do Saara Ocidental, ocupado pela própria Espanha até 1975. O rio a que se referem é o Rio de Ouro, uma das províncias da região. Nessa tentativa, enfrentam a resistência do povo saaraui, que vive lá, e do movimento Frente Polisário.
Essa mistura entre futebol, política e identidade nacional não é novidade para quem conhece a relação do Marrocos com o esporte mais popular do mundo. Nos últimos dias, viralizaram vídeos de torcidas organizadas que dão uma pista sobre isso. Chama a atenção, além da energia e organização desses ultras, o tom político de seus cantos. Em certos momentos, as letras parecem deixar de lado o futebol para falar sobre temas como liberdade, opressão e colonização. Aprecie um exemplo desses vídeos abaixo.
Alguns especialistas consideram as torcidas organizadas marroquinas praticamente organizações sociais. Elas assumiram esse perfil a partir de 2011, na esteira dos protestos da Primavera Árabe, e se inspiraram no envolvimento de torcedores egípcios nos protestos que derrubaram o presidente Hosni Mubarak. No Marrocos, o monarca Mohammed VI respondeu às manifestações com uma nova constituição e promessas de mudanças.
Apesar das reformas, a juventude marroquina mantém sua animosidade em relação ao Estado. Os problemas sociais retratados nos cantos fazem parte da rotina dos jovens: a falta de oportunidades, a repressão policial, a sensação de abandono por parte das elites política e econômica. Em 2016, após casos de violência entre torcedores, as autoridades tentaram banir os ultras dos estádios, o que só fez aumentar essa animosidade. Em uma de suas letras, a torcida Helala Boys, do Kenitra Athletic Club, deixa claras suas visões.
Esta é uma canção para todos os ultras pelo mundo
Todas as pessoas que têm tido sua liberdade roubada
Esta mensagem é para a polícia e o governo
Da sua injustiça, nós já estamos cheios
Só o nosso Senhor é nossa testemunha!
– Helala Boys, torcida do Kenitra Athletic Club
O Raja Casablanca, um dos clubes mais populares e vencedores do país, surgiu em 1949 pela união de trabalhadores sindicalizados e nacionalistas. Naquela época, o país vivia os últimos anos de ocupação por parte da França e a ideia era ter um clube só de marroquinos e para marroquinos. Para isso, os fundadores usaram brechas legais para driblar a lei que obrigava a ter um representante francês dentro da organização.
Com o passar das décadas, o Raja acumulou doze títulos nacionais e três da Liga dos Campeões da CAF (como o nome sugere, o equivale à Liga dos Campeões da Europa e à Libertadores) e se tornou um time de massa. Porém, a identificação política permanece por meio dos ultras, que mantêm ligação com o bairro onde o clube foi fundado e inundam seus cantos com mensagens políticas. A canção mais famosa chama-se “fibladi daalmouni”, que significa “em meu país, eles me oprimem”, e foi entoada por imigrantes que tentavam cruzar o Estreito de Gibraltar para chegar à Europa.

Colonização, independência e nacionalismo
A seleção tornou-se um catalisador da identidade marroquina e os encontros na Copa do Mundo encorparam esse sentimento. Nas oitavas de final, a equipe de Ziyech e Hakimi venceu nos pênaltis a favorita Espanha, que teve um protetorado no norte do país. Nas quartas, foi a vez de bater Portugal, que dominou diversas cidades de seu território séculos atrás.
Como se estivessem vivendo roteiro escrito por um historiador anticolonialista, os Leões do Atlas terão, nesta quarta-feira, mais uma revanche contra um ex-colonizador. Desta vez, será a França, provavelmente a nação com a qual os laços do passado mais se fazem sentir atualmente. Nos tempos de protetorado, iniciado em 1912, o país foi dividido por duas potências europeias: os espanhóis ficaram com o norte, região mais pobre, e os franceses controlaram o resto do país, apelidado de “Marrocos útil”.
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Por mais que a ocupação fizesse parte do período conhecido como neocolonialismo, quando nações da Europa dividiram o controle sobre a África e a Ásia, o caso do Marrocos é um pouco diferente. Não houve o nível de violência visto na colonização da Argélia, por exemplo, e a dinastia marroquina foi mantida como forma de dar uma sensação de normalidade à elite política.
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De forma geral, o protetorado levou avanços materiais ao Marrocos, como melhorias na infraestrutura e na urbanização, ao mesmo tempo em que não se preocupou em aprimorar o Estado, combater a desigualdade e desenvolver noções de cidadania. Porém, os franceses, diferentemente do que fizeram os espanhóis, tiveram maior penetração nas estruturas sociais, deixando uma marca mais duradoura.
Uma dessas marcas se faz sentir no dia a dia. Apesar de as línguas oficiais do Marrocos serem o árabe e o tamazigue (dialeto de origem berbere), o francês é a linguagem mais usada nas universidades, nos negócios e nos cargos públicos. Em Marraquexe, é possível frequentar cafés típicos da França para beber um café au lait. O sistema de leis foi amplamente inspirado naquele dos colonizadores – com as devidas adaptações às leis e à cultura islâmica.
Somente em 1956 o Marrocos conquistou sua independência, depois de anos de crises políticas e conflitos entre os grupos nacionalistas e as forças franco-espanholas. A seleção vermelha e verde pode começar sua caminhada no futebol internacional, até chegar ao ponto mais alto em 2022.

Uma seleção de muitos países
Se os jogadores da seleção marroquina levam o orgulho de seus compatriotas aos gramados do Catar, isso não tem exatamente a ver com o local de onde eles vêm. Dos 26 atletas que compõem o grupo, nada menos que 14 nasceram fora do Marrocos – a maioria deles, ironicamente, em países europeus. É a equipe nacional mais internacional de uma Copa do Mundo que desafia fronteiras.
Amrabat, Ziyech e Mazraoui nasceram nos Países Baixos. El Khanouss é natural de Strombeek-Bever, na Bélgica. Hakimi é de Madri e passou pelas categorias de base do Real Madrid antes de jogar em grandes clubes, como Inter de Milão e PSG. O goleiro Yassine Bounou, mais conhecido como Bono, nasceu em Montreal, no Canadá. Mesmo o atacante En-Nesyri, autor do gol da vitória contra Portugal e marroquino da cidade de Fèz, jogou por toda a carreira na Espanha. Até o treinador Walid Regragui, que costuma exaltar a identidade africana de seu time, veio à luz em Corbeil-Essonnes, França.

Essa mistura de origens não é coincidência. A federação marroquina se aproveita de uma mudança feita pela Fifa em 2004 e que desde então tem transformado a relação de ex-colônias européias com o futebol. Naquela época, a entidade estava preocupada com os casos de jogadores que passavam a defender seleções de outros países por interesses puramente financeiros ou esportivos. Nas novas regras, era preciso que esses atletas tivessem uma “clara conexão” com sua nova nacionalidade. Uma dessas conexões era ser filho ou neto de pessoas nascidas no país.
Isso abriu novas possibilidades para casos como o de Marrocos, nação que possui uma grande população fora de suas fronteiras, especialmente nas terras de seus ex-colonizadores. Na verdade, quem enxergou primeiro essa oportunidade foi a vizinha e rival Argélia, que passou a recrutar franceses de origem argelina para as diversas categorias de sua seleção. Os marroquinos seguiram a mesma estratégia, demonstrando grande competência em convencer esses descendentes a defenderem suas cores, ao invés daquelas do país onde nasceram.
A reunião de atletas vindos de tantos lugares diferentes não tem atrapalhado a coesão e o entrosamento dos Leões do Atlas. Na organização tática, na extrema dedicação em campo e nas comemorações em conjunto, eles mostram que aquilo que têm em comum é maior do que qualquer diferença. Hakimi expressou isso em palavras quando explicou por que recusou o convite para jogar pela Espanha. “Não me sentia em casa. Não é como eu vivia em casa, que é a cultura árabe, sendo marroquino”, explicou.

Como atestam os vídeos das comemorações dos torcedores, eles tampouco se importam se os jogadores de sua seleção nasceram, ou não, no mesmo país que eles. Afinal, sua seleção tem representado o continente africano e todos os países árabes, que nunca tiveram representantes entre os quatro melhores da Copa do Mundo.
As críticas vêm, na verdade, do outro lado. O lendário atacante Marco Van Basten chamou Ziyech de “garoto estúpido” por ter escolhido jogar por Marrocos, ao invés dos Países Baixos, uma seleção teoricamente mais forte.
O Marrocos de Ziyech está nas semifinais da Copa. Os Países Baixos, de Van Basten, estão eliminados.
Um comentário sobre “Nacionalismo internacional: como Marrocos reúne “estrangeiros” para fazer história na Copa do Mundo”