Jogadores da seleção da Alemanha tapam a boca com a mão, em protesto contra a ameaçada da Fifa à ideia de usar braçadeira em apoio às pessoas LGBTQIA+

A Copa do Mundo do Catar foi a mais “política” da história?

Por Luiz Vendramin Andreassa

Em 4 de novembro, poucos dias antes do início da Copa do Mundo do Catar, as federações de todos os países participantes receberam uma carta pouco usual da Fifa. Assinada por Gianni Infantino, presidente, e Fatma Samoura, secretária-geral, ela pedia às seleções que se preocupassem só com a disputa dentro de campo. “Por favor, vamos focar agora no futebol! Não deixem que ele seja arrastado para cada batalha política ou ideológica que existe”.

O comunicado, banhado no cinismo de uma entidade que sempre se vale da política quando isso atende seus interesses, era o reconhecimento de todas as contradições da escolha do Catar como sede do mundial. Uma pequena autocracia que não reconhece direitos humanos básicos, suprime liberdades das mulheres, considera homossexualidade crime e abusou de trabalhadores imigrantes para construir seus estádios. Não surpreende que Infantino quisesse deixar as manifestações políticas bem longe dos holofotes.

Leia: Por que não nos importamos com as violações de direitos humanos na Copa do Mundo do Catar?

Para o azar da Fifa, muitos jogadores e torcedores não deram ouvidos ao apelo. A Copa do Catar foi marcada por inúmeras manifestações e discussões políticas, especialmente durante a primeira fase, quando países de todos os cantos do mundo trouxeram suas mensagens. Logo no início, a organização teve de recorrer a ameaças para evitar que algumas seleções europeias usassem braçadeiras em apoio à população LGBTQIA+. Além de multa às federações, os jogadores que participassem do protesto seriam punidos com cartão amarelo. Os atletas alemães, ao posar para a foto antes do jogo contra o Japão, taparam suas bocas, em protesto à ação da Fifa.

Christian Eriksen, da Dinamarca, na Copa do Mundo do Catar. Ele usa uniforme todo vermelho e braçadeira com a mensagem "sem discriminação", em manifestação política de sua equipe
A Dinamarca estreou na Copa do Mundo com uniforme todo vermelho, inclusive em seu distintivo, e braçadeira com mensagem contra a discriminação. (créditos: reprodução/Instagram

A Dinamarca, por sua vez, usou uniformes completamente vermelhos, inclusive o distintivo, contra as violações de direitos humanos. Já os jogadores iranianos falaram por meio do silêncio: eles não cantaram o hino nacional em sua estreia, diante da Inglaterra, como crítica à repressão do governo de seu país contra as manifestações que lá acontecem desde setembro. Eles também receberam apoio inesperado na segunda rodada, quando um torcedor invadiu o campo do Estádio Lusail, durante o jogo entre Portugal e Uruguai, com bandeira do arco-íris e camisa com mensagens em defesa da Ucrânia e das mulheres iranianas.

Leia: Protestos no Irã chegam ao futebol e afetam a seleção antes da Copa do Mundo

Menos falado, mas tão importante quanto os outros, foi o protesto do atacante Ismaila Sarr, de Senegal. Ao marcar um dos gols da vitória sobre o Uruguai, que garantiu a passagem de sua equipe à segunda fase, ele tapou a boca com uma das mãos e, com a outra, simulou uma arma apontada para sua cabeça. Feito por outros jogadores africanos, o gesto simboliza o descaso do resto do planeta a respeito das guerras e conflitos que acontecem na África.

Para o jornalista, pesquisador e professor Celso Unzelte, a Copa do Catar teve um nível de politização poucas vezes visto antes. “Nós já tivemos outras Copas politizadas. Mas acho que essa do Catar pode ser considerada uma das mais politizadas, pois é um momento em que o mundo inteiro está politizado. Essa discussão é muito mais aberta do que em outras épocas, quando se preocupava somente com o futebol”.

Ismaila Sarr, atacante de Senegal, tampa os olhos com a mão esquerda e aponta o indicador para a cabeça com a mão direita, gesto de protesto pela invisibilidade dos problemas na África
O gesto de Ismaila Sarr, feito na partida contra o Equador, representa a forma como o mundo ignora os conflitos e guerras na África.
(créditos: reprodução/Twitter)

Ações e reações

Todas essas manifestações não passariam despercebidas e sem reações, especialmente por parte de quem foi alvo delas. Jornais iranianos ligados ao governo colocaram as preocupações políticas dos jogadores como responsáveis pela derrota por 6 a 2 diante da Inglaterra. O diário Vatanemrooz acusou parte da população de “explodir em aplausos” e comemorar a goleada sofrida.

Também houve respostas nas arquibancadas. Torcedores do Catar exibiram fotos e ilustrações de Mesut Özil em resposta às críticas dos alemães. A intenção era mostrar a hipocrisia destes, já que o meia apontou os preconceitos vindos de seus compatriotas como motivo de sua aposentadoria da Nationalelf, aos 28 anos. “Eu sou alemão quando ganhamos, mas um imigrante quando perdemos”, disse ele na ocasião.

Leia: Mbappé, Özil e as contradições do futebol que integra e exclui imigrantes

Em resposta às manifestações dos alemães, torcedores do Catar levaram imagens de Özil
Em resposta às manifestações dos alemães, torcedores do Catar levaram imagens de Özil. A intenção era lembrar do preconceito sofrido pelo meia na Alemanha. (créditos: reprodução/Twitter)

Apontar as contradições dos países ocidentais foi mesmo uma via bastante usada por quem se tornou alvo de manifestações políticas antes e durante a Copa do Mundo. Segundo Zarqa Parvez, professora da Universidade Georgetown, do Catar, os críticos ignoram “o fato de que outros países, onde o torneio foi sediado anteriormente, além de sua história violenta de exploração colonial, viram um aumento constante da islamofobia, política de supremacia branca, crimes racistas”. A escolha da Rússia como sede do torneio em 2018, vale lembrar, também foi questionada, mas não tanto quanto a do Catar.

O próprio emir do Catar, Xeque Tamim bin Hamad Al Thani, entrou na discussão. “Há décadas, o Oriente Médio sofre discriminação. Eu acho que isso acontece porque as pessoas não nos conhecem e, em alguns casos, se recusam a nos conhecer”, disse o líder do país, durante o Fórum Econômico Mundial.

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Nem mesmo os jogadores escaparam dos questionamentos. Durante entrevista coletiva, o meia Tyler Adams, dos Estados Unidos, recebeu perguntas de jornalistas iranianos sobre seu sentimento ao defender um país que critica outras nações, mas que sofre com o racismo em sua própria sociedade. Além disso, eles apontaram a forma incorreta como Adams pronunciou a palavra “Irã”.

O americano se saiu bem da saia justa. “Peço desculpas pela minha pronúncia errada do nome do seu país. Dito isso, há discriminação aonde quer que você vá. Uma das coisas que aprendi, especialmente morando fora do país nos últimos anos e tendo que me encaixar em diferentes culturas, é que nos Estados Unidos continuamos progredindo a cada dia”, afirmou. “A educação é superimportante – como você acabou de fazer, ao me educar sobre a pronúncia correta do nome do seu país”.

Seguindo a linha do governo iraniano, Arsène Wenger, lendário técnico do Arsenal e hoje trabalhando na Fifa, associou preocupações políticas a mau desempenho na Copa. Segundo ele, as melhores seleções foram aquelas que “estavam mentalmente preparadas e focaram na competição, e não em manifestações políticas”. Uma espécie de “quem lacra não lucra”, versão futebol internacional.

Arsène Wenger em um campo de futebol. Para o ex-treinador do Arsenal, posicionamento político atrapalhou seleções na Copa do Mundo do Catar
Para Arsène Wenger, seleções que se manifestaram politicamente não conseguiram focar na Copa do Mundo. (créditos: reprodução/Instagram)

Em artigo para o site Spiked, o colunista Mick Hume atacou aquilo que ele chama de “soccerism” (algo como “futebolismo”), isto é, o uso do futebol para fins políticos. Para ele, as elites políticas e culturais do Ocidente têm tentado usar a popularidade do esporte para “educar as massas”. “Essas pessoas dizem amar o ‘jogo bonito’, mas temem e desprezam as pessoas ‘feias’ da classe trabalhadora que o assistem”. Para ele, isso não passa de “vazia sinalização de virtude” e uma tentativa de “nos fazer ajoelhar diante das novas regras politicamente corretas do jogo”.

Celso Unzelte, por sua vez, pensa de forma diferente. “O futebol é lugar, sim, para essas manifestações e reivindicações. É um excepcional meio para levar essas pautas, para a conscientização das pessoas”, afirma. “Tem gente que nem sabe o que é política, mas conhece o futebol, e através do futebol pode se conscientizar. Para mim, o futebol é, antes de tudo, um meio, e não um fim em si”.

Porém, há um ponto em que as acusações de hipocrisia por parte das nações ocidentais fazem sentido. Afinal, como lembrou Nesrine Malik, colunista do The Guardian, o Catar tem muitos negócios com Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, e, com a ajuda deles, está “armado até os dentes”. Enquanto jogadores e treinadores receberam pedidos para boicotar a Copa do Mundo deste ano, quase ninguém pressionou os governantes que têm muito mais responsabilidade na manutenção dos abusos de direitos humanos no país-sede.

Nacionalidades em destaque

A política esteve tão acentuada que surgiram discussões mesmo quando não houve manifestações explícitas. Um dos motivos é o fato de que um em cada seis atletas que estiveram no torneio não nasceram nos países que defenderam – um recorde na história das Copas do Mundo. Isso sem falar nos descendentes de imigrantes que atuaram por seleções como a França, recheada de filhos e netos de pessoas vindas de suas ex-colônias.

No primeiro jogo da seleção suíça, Breel Embolo não comemorou o gol que fez contra Camarões. Nascido na cidade camaronesa de Yaoundé, aos cinco anos de idade ele se mudou com os pais para a Suíça, onde adquiriu a nova nacionalidade. Esta foi a primeira vez que um jogador balançou as redes do país em que nasceu, em uma Copa do Mundo.

Breel Embolo, atacante da Suíça, levanta as mãos e não comemorar o gol feito contra Camarões, o país onde nasceu, na Copa do Mundo
Sem festa: Embolo não comemorou o gol que fez contra Camarões, na primeira fase da Copa do Mundo, por ter nascido no país africano. (créditos: reprodução/Instagram)

O maior exemplo da relação nem sempre absoluta entre nacionalidade e local de nascimento é a seleção de Marrocos. De seus 26 atletas, 14 nasceram em outros países, principalmente da Europa, mas escolheram defender a nação de seus ascendentes. Hakimi é espanhol de nascimento, Bono veio à luz no Canadá e Ziyech é da Holanda – para ficar apenas em alguns dos destaques da equipe.

Leia: Nacionalismo internacional: como Marrocos reúne “estrangeiros” para fazer história na Copa do Mundo

Os marroquinos também levantaram questões históricas por conta dos adversários que enfrentaram ao longo do torneio. Nas oitavas de final, eles venceram a Espanha, sua antiga colonizadora, nos pênaltis. Na fase seguinte, bateram Portugal, com quem tiveram conflitos ao longo dos séculos. Falando de história, é importante lembrar que os mouros, vindos de onde hoje é o Marrocos, dominaram por centenas de anos a Península Ibérica, onde hoje estão as nações espanhola e portuguesa.

Como se não fosse o bastante, a semifinal aconteceu contra a França, que no século XX comandou a maior parte do território marroquino em forma de protetorado – a Espanha ficou com o norte do país durante o período. Esses e outros encontros levantaram, nas redes sociais, conversas sobre torcer para seleções de países que foram colonizados, ao invés dos colonizadores.

Ainda falando dos Leões do Atlas, eles mobilizaram sentimentos de orgulho de africanos e árabes, que nunca tinham visto seus países chegarem entre os quatro melhores de uma Copa. Durante o torneio, houve demonstrações de uma incomum união entre torcedores de nações árabes, que, apesar de compartilharem tradições e traços culturais, muitas vezes se afastam por questões políticas. Um dos pontos de acordo foi a defesa da Palestina – a bandeira do país esteve presente entre torcedores e jogadores em diversos momentos.

Por fim, é preciso citar a partida entre Suíça e Sérvia – uma repetição do confronto que já tinha acontecido em 2018. Alguns dos jogadores suíços, como Xhaka e Shaqiri, têm origem albanesa, um país que mantém conflitos e rivalidades com os sérvios há décadas, principalmente depois da dissolução da antiga Iugoslávia. As provocações aconteceram de novo, mas, diferentemente do que aconteceu na Rússia, as mais explícitas vieram por parte dos sérvios, que chegaram a usar uma bandeira albanesa para mostrar sua visão da disputa.

Leia: Suíça e Sérvia: entre armas e chuteiras, uma independência em jogo

Política e Copa do Mundo: uma união antiga

Depois dessa lista de manifestações, discussões e encontros políticos (sem contar outros que não citamos para não estender ainda mais o texto), parece fácil responder à questão do título desta matéria: a Copa do Mundo de 2022 foi, sim, a mais politizada da história. Porém, antes de qualquer resposta definitiva, é preciso lembrar que essa relação acontece há muito tempo, desde que o torneio foi criado.

A segunda edição, sediada na Itália, já teve um forte cunho político. O ditador Benito Mussolini tentou aproveitar toda a carga emocional do evento para criar uma grande mobilização nacional e promover seu governo. Para isso, escalou seu chefe de propaganda, Achille Starace, para organizar o torneio, renomeou o Estádio Olímpico Grande Torino com seu próprio nome e tentou interferir nas escolhas dos árbitros para favorecer sua seleção, entre outras medidas.

A importância simbólica daquela Copa, para o regime fascista, aumentou quando a Tchecoslováquia, adversária da Itália na final, anunciou, no mesmo dia do grande jogo, uma aliança política com a União Soviética. O plano quase terminou em desastre – a Azzurra perdia por 1 a 0 até os 36 minutos do segundo tempo, quando Orsi igualou o placar. Na prorrogação, um gol Schiavio deu o título aos donos da casa, fazendo explodir o Estádio Nacional do Partido Nacional Fascista.

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Jorge Videla (centro) foi um dos principais nomes do golpe militar e comandou a Argentina na maior parte da ditadura, inclusive no período da Copa do Mundo de 1978. (créditos: WikiMedia Commons)

A Copa de 1978 foi Igualmente usada para fins políticos escusos. Na ocasião, a ditadura militar da Argentina tentou promover seus trunfos e esconder as atrocidades que cometia. Porém, era difícil separar o futebol do poder, especialmente porque, a poucos metros do Estádio Monumental de Núñez, palco da decisão, funcionava a Escola Naval de Mecânica, onde prisioneiros políticos sofriam torturas, estupros e assassinatos.

Naquela edição, com mais informações disponíveis do que em 1934, houve cobranças por posicionamentos dos envolvidos. Paul Breitner, autor de um dos gols do título da Alemanha Ocidental na Copa anterior, mas afastado de sua seleção em 1978, sugeriu aos companheiros que não cumprimentassem o ditador Rafael Jorge Videla. Seu colega Sepp Maier e o atacante italiano Paolo Maldini assinaram uma petição da Anistia Internacional. Além disso, alguns atletas, como o sueco Ralph Edstrom, visitaram o movimento Mães da Praça de Maio, formado por mães de pessoas assassinadas ou desaparecidas durante a ditadura.

Leia: Da seleção aos clubes, a relação do futebol argentino com a memória da ditadura

Apesar dos protestos, a Copa do Mundo de 1978 teve final parecido com aquele de 1934: assim como a Itália, a Argentina venceu a Holanda na prorrogação e faturou seu primeiro título mundial. Anos depois, quando questionados sobre o uso de sua equipe para legitimar a ditadura, jogadores argentinos se defenderam dizendo que jogaram pelo povo argentino, não pelo governo. Discurso reiterado até mesmo pelo treinador naquela ocasião, Luis Menotti, conhecido por suas ideias políticas de esquerda.

Outras Copas também tiveram forte influência política, mas os exemplos de 1934 e 1978 servem para ilustrar como essa relação é antiga – e como a Fifa nunca se importou em sediar seu maior evento em ditaduras, por mais violentas e totalitárias que fossem. Nesse sentido, Rússia e Catar não são exceções, apenas novos itens na longa lista de decisões, no mínimo, questionáveis da entidade. A diferença é que, nos últimos anos, o tema é mais debatido – e as críticas são mais numerosas.

Celso Unzelte analisa esse movimento. “Acho que essa cobrança da política no futebol vem aumentando, mas, infelizmente, é insuficiente. Ela não tem sido acolhida pela Fifa, pelas seleções, pelos clubes, por quem faz o futebol. O pessoal do negócio do futebol ainda não acordou para discussões, inclusive patrocinadores”, afirma. “Enquanto não houver isso, a gente vai ficar estagnado”.


Tal mudança não parece perto de acontecer. Mesmo com todas as críticas à realização da Copa do Mundo no Catar, a Fifa obteve receita de 7,5 bilhões de dólares entre 2019 e 2022, um bilhão de dólares a mais do que no ciclo anterior. Por mais que tenha falhado em coibir as manifestações políticas durante o torneio, a entidade máxima do futebol teve sucesso ao manter sua máquina de dinheiro funcionando.

Gianni Infantino, presidente da Fifa, com uma bola em primeiro plano
Apesar da repercussão negativa, a Fifa, do presidente Gianni Infantino, obteve receita recorde com a Copa do Mundo do Catar.
(créditos: reprodução/Facebook)

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