Por Luiz Vendramin Andreassa
Quase todas as afirmações sobre “quem foi melhor”, dentro do futebol, geram discussões quentes e dividem opiniões. Porém, poucos discordam quando se diz que Lionel Messi e Cristiano Ronaldo são os melhores jogadores do século XXI. Dentro de campo, eles encantaram o mundo com mais de uma década de disputas e rivalidade. Em 19 de janeiro, os dois craques vão se encontrar novamente, no amistoso entre PSG e um time combinado de Al-Hilal e Al-Nassr, na Arábia Saudita. Só que, nesse caso, eles serão, acima de tudo, instrumentos de interesses políticos e de “sportswashing”.
Misturando as palavras inglesas para “esporte” e “lavagem”, sportswashing é um termo criado recentemente para definir algo antigo: o uso do esporte – por indivíduos, empresas ou governos – para melhorar reputações, legitimar atitudes e tirar o foco de atitudes condenáveis. Na imprensa, ele se popularizou nos últimos anos com os investimentos de governos autoritários, a maior parte deles do Oriente Médio, em clubes europeus e em grandes eventos esportivos.

Tamim bin Hamad Al Thani, emir e líder político do Catar, é especialista nessa prática. Em 2010, com manobras questionáveis e em meio a muitas críticas, o país asiático conquistou o direito de sediar a Copa do Mundo de 2022. Um ano depois, ele usou o Qatar Investment Authority, fundo de investimentos de seu país, para comprar o Paris Saint-Germain. Sob o comando do empresário Nasser Al-Khelaïfi, o clube ganhou bilhões para investir em jogadores – Ibrahimovic, Cavani, Neymar, Mbappé e o próprio Messi são apenas alguns deles – e deu em troca sua popularidade e alcance midiático.
A estratégia nem sempre dá certo. Ao receber a Copa, os abusos de direitos humanos cometidos pelo Catar se tornaram conhecidos do resto do mundo. Por lá, as mulheres têm sua liberdade cerceada e a homossexualidade é considerada crime; não há espaço para oposição política e críticos são reprimidos. Mas Al Thani soube aproveitar os holofotes para fazer movimentos diplomáticos. Principalmente quando usou a bandeira da Arábia Saudita para comemorar a vitória do país árabe sobre a Argentina, na primeira rodada.
A comemoração era o que faltava para reconciliar as duas nações. Em 2017, a Arábia Saudita acusou o Catar de ser conivente e apoiar grupos terroristas ligados ao Irã, seu grande rival na região. Como retaliação, os sauditas cortaram relações diplomáticas com o vizinho, medida adotada, na sequência, por Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito. Fazendo fronteira terrestre apenas com a própria Arábia, o Catar precisava dar fim ao isolamento.
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A Copa do Mundo coroou uma reaproximação que já vinha acontecendo entre os dois governos. Com as fronteiras reabertas, cerca de 500 mil sauditas entraram no território catari para apoiar sua seleção. Não surpreende a escolha do futebol para celebrar as pazes, com a disputa do amistoso entre o PSG de Messi e a equipe formada por jogadores de Al-Hilal e Al-Nassr, de Cristiano Ronaldo, em Riad. Marcelo Gallardo, ex-técnico do River Plate, vai comandar o combinado.
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Sportswashing: nome novo, prática antiga
Em 1934, muito antes da criação da palavra sportswashing, Benito Mussolini já sabia que a popularidade do futebol poderia ser útil ao seu projeto de poder. Ao sediar a Copa do Mundo, o ditador tentou unir o povo italiano em torno da seleção nacional e promover as ideias fascistas para o resto do planeta. Em campo, o plano não poderia ter dado mais certo: com gol de Schiavio, na prorrogação, a Itália venceu a Tchecoslováquia no Estádio Nacional do Partido Nacional Fascista e conquistou seu primeiro título mundial.
Outros governos autoritários seguiram esse exemplo. A ditadura militar brasileira usou a vitória da Seleção no México, em 1970, para estimular o sentimento de nacionalismo e associar o Estado às qualidades daquela equipe lendária. Oito anos mais tarde, o regime militar que comandou a Argentina entre 1976 e 1983 fez do Mundial de 1978, disputado em seu território, uma ferramenta para melhorar sua imagem e dissipar as críticas contra os inúmeros crimes que cometeu.
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Porém, o termo sportswashing só surgiu em meados da década passada, para nomear o uso escancarado do esporte por Rússia, China e países do Oriente Médio – ou seja, quando a prática passou a ser comum fora do Ocidente. O primeiro caso mais famoso foi o Chelsea, comprado pelo magnata russo Roman Abramovich, em 2003, por 140 milhões de libras (em valores da época). Próximo do presidente Vladimir Putin, o empresário sempre negou as acusações de interesse geopolítico por trás de seu investimento no time inglês.
Tendo ou não a influência de Putin, a verdade é que o caso se tornou emblemático. O investimento bilionário tirou os Blues do grupo intermediário da Inglaterra e os colocou entre os gigantes do futebol mundial, com direito a cinco títulos da Premier League e dois da Liga dos Campeões. Em março de 2022, durante partida contra o Burnley, quando a torcida da casa fez um minuto de aplausos em apoio à Ucrânia na guerra contra a Rússia, os torcedores azuis responderam gritando o nome de Abramovich.

Durante os anos 2000, conforme o Campeonato Inglês se tornava o mais assistido e prestigiado do mundo, outros líderes políticos passaram a enxergá-lo como oportunidade midiática. Em 2008, o Sheik Mansour bin Zayed Al–Nahyan, membro da família real dos Emirados Árabes Unidos, pagou 210 milhões de libras pelo Manchester City. Com impulso financeiro e muitas contratações, a equipe deixou para trás a inferioridade em relação ao Manchester United, conquistou o título nacional depois de 44 anos e entrou para o seleto grupo dos melhores clubes do mundo.
E não parou por aí. Em 2021, foi a vez do Newcastle ser vendido. O comprador é um fundo de investimentos da Arábia Saudita e o valor ficou em torno de 300 milhões de libras, o equivalente a 2,2 bilhões de reais na ocasião. Com isso, o país se juntou a Catar e Emirados Árabes Unidos, seus vizinhos no Golfo Pérsico, e passou a ter também seu próprio time.
Entretanto, o sportswashing não acontece apenas pela compra de clubes de futebol. O governo de Ruanda, um dos países mais pobres do mundo, paga cerca de 10 milhões de libras para o Arsenal pelo direito de exibir a frase “visit Rwanda” em sua camisa.
Bola para um lado, crimes para o outro
Quando o Al-Nassr anunciou a contratação de Cristiano Ronaldo, nos últimos dias de 2022, a Anistia Internacional, uma das principais organizações de defesa dos direitos humanos no mundo, fez um alerta e um apelo.
Ronaldo não deveria permitir que sua fama e seu status de celebridade se tornem uma ferramenta saudita. Ao invés de elogiar a Arábia Saudita de forma acrítica, ele deveria usar sua considerável plataforma pública para chamar atenção para as questões de direitos humanos do país.
Por mais que os ataques ao sportswashing tenham sua carga de hipocrisia – afinal, países ocidentais fizeram e ainda fazem isso – a verdade é que as críticas têm razão de existir. A Arábia Saudita possui um dos regimes mais repressivos do planeta e a compra de CR7 faz parte de um rebranding (para usar outro termo em inglês da moda), uma tentativa de mudar sua imagem perante o resto do planeta, sem buscar uma transformação verdadeira.
Nos últimos anos, o príncipe Mohammad bin Salman, também conhecido como MBS e quem efetivamente manda no país, de fato promoveu reformas políticas e sociais. Ele acabou com a proibição a mulheres de dirigirem automóveis e assistirem partidas de futebol, permitiu a reabertura de cinemas e tirou poder da temida polícia religiosa, encarregada de fazer a população seguir as leis islâmicas.

Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita iniciou investimentos bilionários para atrair a atenção do mundo e promover sua suposta abertura. Ela sediou edições das Supercopas da Itália e da Espanha, comprou o Newcastle, criou sua própria liga de golfe e planeja sediar a Copa do Mundo de 2030. Para ajudar nesse último objetivo, mas com a justificativa de promover o turismo em seu território, o país assinou um contrato de 25 milhões de libras (cerca de 150 milhões de reais) com Messi, seu “embaixador”.
Tamanho esforço e dinheiro despendidos mostram que, para a Arábia Saudita, o esporte é mais que uma ferramenta de marketing. Ele se tornou uma forma de soft power, termo das relações internacionais que descreve o uso da cultura e das ideias para influenciar outras nações, em alternativa à força bruta. De acordo com especialistas, a tática é eficiente e chega a enfraquecer as instituições democráticas das cidades cujos principais clubes são comprados por autocracias.
Para algumas pessoas, porém, essa estratégia de marketing da Arábia Saudita causa mudanças reais. “Tudo está diferente. Eu finalmente sou independente”, disse Salma Sultan, em entrevista à revista Time. Mãe de seis filhos e separada do marido, ela aproveitou a permissão para dirigir e passou a trabalhar como motorista para complementar a renda. Na capital Riad, jovens participam de festas e eventos esportivos e têm acesso a formas de diversão até pouco tempo inexistentes.

A grande questão é que, apesar das transformações, a Arábia Saudita continua sendo um país extremamente autoritário. Mulheres ainda não possuem os mesmos direitos dos homens, a homossexualidade é considerada crime e a monarquia absolutista não permite o florescimento de qualquer semente de democracia. Pior que isso: o Estado reprime opositores com prisões, torturas e execuções. Só na década de 2000, 1.065 pessoas foram executadas, segundo base de dados da Universidade Cornell, dos Estados Unidos. Em março de 2022, de acordo com a Human Rights Watch, 81 condenados foram mortos sem direito a um julgamento justo.
Entre as vítimas do governo saudita, o caso mais famoso é o de Jamal Khashoggi. Jornalista de viés progressista e forte crítico do regime, ele foi capturado, morto e esquartejado em Istambul, na Turquia, em 2018. Mohammad bin Salman nega envolvimento no crime, mas o Departamento de Estado dos Estados Unidos apontou, em relatório, que o assassinato teve o aval do príncipe.
O que tem sido feito contra o sportswashing?
Diante do uso dos esportes, especialmente o futebol, por regimes autoritários, o que tem sido feito pelas entidades que os comandam? Pelo lado da Fifa, muito pouco. Apesar de se posicionar a favor de direitos humanos e igualdade, a federação não tem problemas em se associar a governos que perseguem e oprimem minorias. E, assim como fez ao longo do século XX, lida muito bem com ditaduras – basta lembrar que, antes do Catar, a Copa do Mundo aconteceu na Rússia.
Nada sintetiza melhor essa postura que a célebre declaração de Jèrome Valcke, quando era secretário-geral da Fifa. “Eu vou dizer algo que parece louco, mas menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa do Mundo. Quando você tem um chefe de Estado forte que pode decidir, como talvez [o presidente da Rússia, Vladimir] Putin possa fazer em 2018, é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha, onde você precisa negociar em diferentes níveis”, disse Valcke em 2013.

Outras entidades europeias não possuem regras específicas contra o sportswashing e focam apenas no controle da compra de clubes. A UEFA, que comanda o futebol europeu, proíbe que times pertencentes ao mesmo dono participem de suas competições. Uma regra importante, mas que é passível de ser burlada, com alguma criatividade.
A Premier League, da Inglaterra, possui uma série de requisitos em relação à venda de clubes. Contudo, como vimos nos casos citados, eles não impedem o investimento maciço de Estados em sua liga. Já a Federação Francesa não permite que o mesmo dono possua dois clubes, independentemente de eles disputarem ou não os mesmos campeonatos. Ainda assim, seu conjunto de regras é um dos mais flexíveis entre as principais ligas europeias. Por lá, alguns times são 100% controlados por empresas ou fundos de investimentos.
No caminho contrário, quem se destaca é a DFB, Associação Alemã de Futebol. Desde 1998, ela adota o sistema conhecido como 50+1. Segundo essa regra, 50% mais 1 das ações precisam pertencer às associações de membros – apesar de haver exceções, como os dois times fundados por trabalhadores de empresas, Bayer Leverkusen e Wolfsburg. A intenção é proteger os clubes de investimentos estrangeiros. Até mesmo o Red Bull Leipzig pertence, em sua maioria, a uma associação – mesmo que ela seja formada por funcionários da empresa de bebidas.
Diferentemente da Alemanha, que em 2018 optou por manter a regra 50+1, o Brasil caminha para maior abertura aos investimentos. Uma lei aprovada em 2021 passou a estimular a transformação dos clubes em empresas (ou Sociedades Anônimas do Futebol, as famosas SAFs), que podem ser vendidas. Muitos deles viram nisso uma oportunidade de sanar dívidas e se recuperar economicamente, ou mesmo ter maior poder de investimento.

É o caso do Cruzeiro, comprado por Ronaldo; do Botafogo, do qual John Textor possui 90% das ações; e do Bahia, vendido ao City Group – este, controlado pelos Emirados Árabes e dono do Manchester City e diversos outros clubes. Com isso, o futebol brasileiro pode ser o próximo alvo de governos autoritários interessados na popularidade do esporte, caso eles considerem que o investimento valha a pena.
Enquanto não existem regras específicas e eficazes contra o sportswashing, a oposição a essa prática acontece por meio de atores que não têm influência direta nesse jogo de interesses, mas cuja voz é importante. Um desses atores é justamente a maior fonte de renda do futebol: os torcedores. Na Alemanha, é comum ver torcidas organizadas protestando contra a compra de clubes e o uso do esporte para fins escusos. No ano passado, várias delas levaram faixas com mensagens contra a Copa do Mundo no Catar.
Outro pilar de resistência a essas investidas são as organizações de defesa dos direitos humanos. Há anos, elas vêm expondo as intenções de governos autoritários, que, ao invés de promover mudanças e reformas efetivas, tentam melhorar suas imagens manipulando as emoções que os esportes despertam nas pessoas. Human Rights Watch e Anistia Internacional são apenas as representantes mais famosas dessa rede.
Por fim, é preciso destacar o papel da imprensa. É por meio dela que conhecemos as denúncias, os abusos e os crimes que governantes autoritários tentam esconder. E que isso não se limite àqueles com má reputação, como Rússia, Catar e Arábia Saudita: é importante que o jornalismo esteja alerta também para o que fizerem de errado outros países envolvidos com o esporte. Estados Unidos, México e Canadá, sedes da Copa do Mundo de 2026, são um bom exemplo.
