Na política, como acontece no futebol, uma vitória apertada, conquistada nos detalhes, pode ter consequências de proporções enormes. Foi assim com o referendo no qual, por uma margem de apenas 3,8% dos votos, os britânicos decidiram retirar o Reino Unido da União Europeia. Logo que se soube da vitória do chamado Brexit (mistura das palavras “Grã-Bretanha” e “saída”, em inglês), em 24 de junho de 2016, começaram inúmeras especulações e incertezas. Poucos conseguiram prever, à época, que os impactos chegariam inclusive ao futebol brasileiro.
Até alguns anos atrás, eram poucos os jogadores do Brasil que optavam por construir suas carreiras na Inglaterra. Por um bom tempo, as principais referências foram Juninho Paulista, que teve três passagens pelo Middlesbrough entre 1995 e 2004, e Gilberto Silva, peça fundamental do melhor Arsenal dos anos 2000. Mais raros ainda eram os casos de atletas que se transferiam diretamente do Brasil para o futebol inglês. Fernandinho e Willian, por exemplo, chegaram à Europa pelo Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, antes de defenderem Manchester City e Chelsea por muitos anos.
A Premier League já era, há algum tempo, a mais rica e badalada do mundo quando os clubes ingleses passaram a ver os atletas brasileiros com melhores olhos. E quando esses atletas, por sua vez, começaram a considerar a Inglaterra melhor opção que Espanha, Itália e França. Porém, a partir do momento em que essa relação se desenvolveu, virou um fenômeno à parte. Agora, os torcedores do Brasil se acostumam a ver os times da Terra da Rainha sondando os jogadores que se destacam por aqui.
Os exemplos são abundantes. Em questão de meses, o Nottingham Forest levou Gustavo Scarpa e Danilo, dois dos mais importantes atletas do Palmeiras em suas conquistas recentes. Nos primeiros dias de 2023, Andrey Santos foi contratado pelo Chelsea, em razão de seu bom desempenho na série B do ano anterior. Mais recentemente, João Gomes trocou o Flamengo pelo Wolverhampton. Isso sem falar de Diego Rosa e Marquinhos, adquiridos por Arsenal e Manchester City, respectivamente, ou de Kayky, comprado pelo City antes mesmo de disputar uma partida profissional pelo Fluminense.
As mudanças causadas pelo Brexit têm tudo a ver com essa nova tendência. Para começar a entender isso, é preciso lembrar que, dentro da União Europeia, trabalhadores, mercadorias e serviços têm livre circulação. Os jogadores nascidos em um dos países do bloco não são considerados estrangeiros em clubes de outros países do grupo. Dessa forma, o limite para atletas de diferentes nacionalidades não vale para eles. Isso permite a escalação de times sem um único jogador nacional, como aconteceu em 2016, quando a Inter de Milão entrou em campo sem um único atleta italiano, por exemplo.
Quando 51,9% dos votos do referendo decidiram que o Reino Unido deveria deixar a União Europeia, dirigentes e torcedores se preocuparam com as possíveis consequências para a Premier League. Afinal, ela é conhecida pelos astros que consegue reunir, o que cativa o público no mundo inteiro, aumentando assim seus rendimentos – o ciclo virtuoso responsável por tornar o futebol inglês muito mais rico que o de qualquer outro país. Se o limite de estrangeiros e as novas regras para concessão de visto de trabalho passassem a valer para atletas nascidos em nações do bloco, como França, Alemanha, Portugal e Espanha, essa bonança estaria em risco.
As regras que mudam o jogo
Enquanto o Brexit passava por diversas fases de implementação, as principais entidades do futebol inglês se sentaram à mesa e discutiram novas regras para a contratação de jogadores estrangeiros. A Football Association (FA), Federação Inglesa de Futebol, de um lado, e a Premier League, que organiza a primeira divisão, estavam no centro do debate, com objetivos diferentes.
Para a FA, o importante era dar mais espaço aos jovens ingleses, de forma a fortalecer a seleção nacional a médio e longo prazos. Já a Premier League, assim como os clubes, queria manter a facilidade para adquirir e acumular atletas de países da União Europeia – a maioria, inclusive, foi contra o Brexit. As negociações deram origem a regras que mudaram os alvos desses clubes – e fizeram com que eles olhassem com mais carinho para Brasil e Argentina.
A partir de 1º de janeiro de 2021, passou-se a usar novos critérios para dar pontuações aos atletas de fora do Reino Unido. Somente aqueles que atingem 15 pontos obtêm o visto de trabalho. E quais são esses critérios? Basicamente, a participação em campeonatos nacionais e continentais, além da seleção. A ideia é conceder o visto àqueles que se destacam em sua profissão, como acontece em outras áreas da economia, mantendo assim a facilidade para comprar os principais atletas da Europa.
Só que, nessa mudança, os sulamericanos passaram a competir com os europeus em maior igualdade de condições. Há uma classificação de cada liga nacional, de forma que cada uma concede pontos diferentes a todos os jogadores de fora do Reino Unido. Os campeonatos brasileiro e argentino ficaram entre os mais prestigiados nessa classificação, à frente da segunda divisão da França ou da Alemanha, onde times médios e pequenos da Inglaterra costumavam ir atrás de bons negócios. Um atleta como o ex-palmeirense Danilo, por exemplo, que disputou o Brasileirão e a Libertadores por três anos seguidos, quase sempre como titular, alcança facilmente os 15 pontos necessários.
O caso de Andrey Santos é a exceção que explica a regra. Como a maioria dos jogos que disputou pelo Vasco foi na Série B, que não conta pontos para o visto de trabalho, ele ainda não pode defender o Chelsea. Por isso, o clube de Londres tem tentado emprestá-lo a times brasileiros que possam dar a ele tempo de jogo no Brasileirão e na Libertadores. Além de manter o volante, destaque da Seleção Brasileira no Sulamericano Sub-20, em atividade, ele poderia, em poucos meses, atender aos critérios impostos pela nova regra.
Outra mudança importante, mas que não impacta diretamente o Brasil, afeta a capacidade de os clubes ingleses assinarem com jovens revelações. A Fifa proíbe o uso de atletas estrangeiros com menos de 18 anos (como é o caso de Endrick, que só poderá atuar pelo Real Madrid a partir de 2024), mas essa regra não afeta as nações da União Europeia. Agora, os times do Reino Unido perderam essa possibilidade e terão de esperá-los alcançar a maioridade. Casos como o de Fàbregas, comprado pelo Arsenal em 2003 quando tinha apenas 16 anos, não poderão mais acontecer.
Mas, se levarmos em conta as dificuldades impostas ao futebol, e até mesmo o risco de seu enfraquecimento, por que os britânicos optaram por deixar a União Europeia?
O Reino Unido pula do barco da UE
Apesar de ter adotado seu nome atual apenas na década de 1990, o bloco que veio a se tornar a União Europeia surgiu após a Segunda Guerra Mundial. Países europeus se uniram para promover a integração no continente, tanto econômica quanto política. Depois dos inúmeros conflitos que tiveram seu ápice nas duas grandes guerras, os líderes dessas nações sentiram a necessidade de reforçar seus laços para evitar novos confrontos.
Com o passar dos anos, outros países aderiram ao bloco e novas instituições foram criadas, de forma a ampliar cada vez mais sua atuação. Hoje em dia, ele é considerado uma União Política e Monetária, grau mais alto de integração, segundo a teoria das relações internacionais. Isso significa que, além da ausência de barreiras ao comércio, há uma moeda comum, o euro, e decisões conjuntas em diversas áreas, como segurança, proteção ambiental e direitos humanos. Para organizar isso tudo, a União Europeia tem seus próprios Banco Central, Parlamento e Tribunal de Justiça. Os cidadãos dos países membros elegem os componentes de alguns desses órgãos.
O Reino Unido aderiu ao bloco em 1973, mas essa relação nunca foi das mais próximas, tanto que ele optou por não entrar na Zona do Euro, assim como fizeram Suécia e Dinamarca. As tensões não se resolveram ao longo das décadas, e em 2016, o primeiro-ministro David Cameron, do Partido Conservador, promoveu o referendo sobre a permanência no bloco, mesmo sendo pessoalmente contra a saída. Depois do resultado, ele renunciou ao cargo e se iniciou um longo período de transição que só terminaria em 1º de janeiro de 2021.

(créditos: reprodução/WikiMedia Commons)
Liderada por Boris Johnson, ex-primeiro-ministro, e Nigel Farage, líder Partido de Independência do Reino Unido, a campanha pró-Brexit argumentou que participar da União Europeia traria mais desvantagens do que benefícios. O ponto mais reforçado era recuperar a soberania nacional, especialmente no que se refere à entrada de imigrantes no território britânico. Havia também um forte sentimento antissistema e uma insatisfação com os “burocratas europeus”. Outro ponto era a promessa de redirecionar as 350 milhões de libras repassadas anualmente à UE para o sistema público de saúde.
Por seu componente xenofóbico, o triunfo do Brexit está ligado ao contexto de vitórias da extrema-direita ao redor do mundo nos anos 2010, incluindo as eleições de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil. Diante dos sentimentos envolvidos, principalmente entre a parcela mais velha da população britânica, as previsões sobre os prejuízos econômicos da saída não tiveram muito poder de convencimento. Porém, isso não significa que, no mundo real, eles não se fariam sentir.

(créditos: reprodução/WikiMedia Commons)
Se grandes corporações e organizações, como a Premier League, têm poder suficiente para contornar regras e manter seus negócios diante do novo cenário, o mesmo não se pode dizer das pequenas empresas. Muitas daquelas que dependiam de negócios com os países da União Europeia se viram diante de barreiras impeditivas, ainda que tenha sido fechado um acordo de livre comércio entre o Reino Unido e o bloco. Afinal, essas barreiras não são compostas apenas por tarifas, mas também por controles de fronteira, verificações alfandegárias, inspeções sanitárias etc.
Em entrevista à CNN, Rob Walker, dono de uma fabricante de jóias para crianças, contou que o tempo de envio de suas mercadorias a países da UE subiu de dois dias para três semanas. Segundo pesquisa da Câmara de Comércio Britânica com 1.168 empresários, 77% disseram não ter tido vantagem comercial com o Brexit e mais da metade relatou dificuldades para se adaptar às novas regras. O PIB britânico hoje é 5,5% menor do que seria em caso de permanência na União Europeia e o Reino Unido é o único membro do G7 (grupo dos países mais desenvolvidos economicamente) cuja economia é menor do que antes da pandemia.

Além do Brexit: a força do dinheiro
As novas regras de concessão de visto de trabalho não explicam, sozinhas, o êxodo de jogadores brasileiros para a Inglaterra. Esse movimento é fruto também de uma mudança de percepção dos clubes ingleses, que passaram a apostar nos craques brasileiros. Isso foi possível graças ao sucesso dos já citados Fernandinho e Willian, além de outros, como David Luiz, Lucas Leiva e Phillipe Coutinho. Todos eles construíram longas e sólidas carreiras, mesmo que não tenham sido as maiores estrelas de suas equipes.
Até então, havia uma desconfiança sobre a capacidade de os jogadores vindos do Brasil se adaptarem ao estilo do futebol inglês, supostamente mais físico, rápido e “intenso” do que aquele que se pratica aqui. Por conta disso, os poucos contratados eram aqueles que passavam por “testes” em ligas de menor expressão, como a portuguesa e a ucraniana, ou mesmo em equipes médias da Espanha, da Itália e da Alemanha. O bom desempenho de alguns atletas que foram diretamente para a Inglaterra, entre eles Gabriel Jesus, Richarlison e Gabriel Martinelli, ajudou a dissipar essas dúvidas.

Em números absolutos, essa tendência não parece tão forte. Nos últimos anos, jogadores vindos do Brasil lideram o ranking de transações internacionais, com a maioria deles sendo vendida para times portugueses. Por outro lado, na atual temporada, os brasileiros são os estrangeiros mais numerosos na Premier League, depois de franceses e espanhóis. Ao todo, 34 membros formam essa verdadeira colônia verde-amarela, sendo que 10 deles são volantes.
Outro dado que escancara a atual preferência pelos brasileiros é o número de atletas convocados para a Copa do Mundo enquanto jogam na Premier League. Para o Mundial de 2002, não foi escolhido nenhum jogador de clubes da Inglaterra; em 2006, o único representante foi Gilberto Silva, do Arsenal. Esse número cresceu nas edições seguintes, com seis em 2010 e em 2014. Para a Copa do Catar, a quantidade dobrou e bateu recorde: ao todo, 12 dos 26 chamados por Tite atuavam na Terra da Rainha.

Além desse novo olhar sobre os talentos brasileiros, é preciso destacar o poderio financeiro da Premier League. Se o Reino Unido vive má fase na economia, o mesmo não se pode dizer da elite do seu futebol. Com acordos comerciais milionários, especialmente sobre os direitos de transmissão dos jogos na TV, ela é de longe a mais rica do mundo. Na temporada 2021/2022, somente esses direitos de transmissão garantiram 2,5 bilhões de libras aos 20 clubes do campeonato – cerca de 14,6 bilhões de reais. O Norwich, que menos recebeu recursos na ocasião, abocanhou 100,6 milhões de libras (590 milhões de reais).
Com isso, mesmo times pequenos e médios da Inglaterra conseguem fazer frente a gigantes do continente quando se trata de capacidade de obter reforços. Para se ter uma ideia, no ano de 2022, os clubes da primeira divisão inglesa gastaram cerca de cinco vezes mais em contratações internacionais que os de LaLiga (Espanha), Bundesliga (Alemanha) e Serie A (Itália) somados.
Soma-se a isso a diferença de valor entre as moedas do Reino Unido e do Brasil. Mesmo com sua recente desvalorização frente ao dólar, uma libra vale 6,26 reais, na cotação do fim de fevereiro de 2023. Para um clube de médio porte, como Wolverhampton ou Nottingham Forest, não é difícil pagar 20 milhões de libras em um talento estrangeiro. Para os times brasileiros, mesmo os mais endinheirados, por outro lado, esse montante faz enorme diferença na situação financeira.
Não dá para dizer que é algo inédito. Ao longo do tempo, os torcedores brasileiros viram os atletas de seus times seguirem diferentes fluxos migratórios. Na década de 1990, vários se transferiram para a incipiente liga japonesa; nos anos 2010, clubes chineses levaram diversos destaques do nosso futebol. A diferença é que a Premier League tem tradição e recursos que nenhuma outra liga teve na história. Portanto, a tendência de vermos nossos jogadores favoritos desfilando pelos campos da Inglaterra não deve mudar tão cedo.