Por Luiz Vendramin Andreassa
Posts em redes sociais, manifestações de jogadores e ex-jogadores, carta da CBF, declaração do presidente Lula e pedido do governo federal por investigação. De todos os casos de racismo e perseguição contra Vinícius Jr. na Espanha, nenhum gerou tanta revolta no Brasil quanto o triste episódio de domingo (21) no Estádio de Mestalla, em Valencia. Reação que deu origem a promessas e medidas tímidas por parte das entidades espanholas.
Esse caso se destaca entre os outros porque, além de ser revoltante por si só, condensou, em uma sucessão de acontecimentos, o que tem sido a campanha contra o atacante do Real Madrid nos últimos anos. Torcedores chamaram Vini de macaco antes e durante a partida; os jogadores adversários o hostilizaram e agrediram; a arbitragem não tomou providências efetivas; e, ao fim, a vítima acabou expulsa depois de reagir a um enforcamento.
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Como era de se esperar, Vinicius Jr. se pronunciou logo após a partida e acusou LaLiga, que administra a primeira e a segunda divisões da Espanha, de omissão. A resposta de Javier Tebas, presidente da entidade, conseguiu manter o nível deplorável do que se sucedeu durante a partida. Ao invés de apoiar o brasileiro, o dirigente preferiu acusá-lo para tentar aliviar a imagem do campeonato. Postura que não surpreende, uma vez que Tebas fez parte do partido Fuerza Nueva, criado como sucessor do fascismo do ditador Francisco Franco, e hoje é apoiador do Vox, legenda de extrema-direita.

A resposta de outras partes do futebol espanhol não tem sido melhor. Em comunicado oficial, o Valencia disse que identificou três torcedores que fizeram gestos racistas e reiterou sua “mais veemente condenação e sua posição enfática contra o racismo”. Por outro lado, argumentou que “é totalmente falso que todo o estádio proferiu insultos racistas”. “Não podemos aceitar que o valencianismo seja rotulado como racista”, completou a nota. Gabriel Paulista, por sua vez, exaltou o apoio da torcida na vitória sobre o Real Madrid, ao invés de citar os crimes cometidos. Depois, o zagueiro dos Morcegos pediu desculpas.
O mesmo tem acontecido em parte da imprensa espanhola. O comentarista Cristobal Soria, figura frequente em programas de televisão, criticou o próprio Vinicius Jr. “O Real Madrid não merece que um só jogador manche o seu escudo e a instituição em todos os campos da Liga”, afirmou. O jornal Super Deporte, de Valencia, afirmou em sua capa que o Real montou um show por “um incidente racista condenável, mas totalmente isolado”, e se achou no direito de ordenar ao brasileiro que “não provoque”.

As medidas tardias e insuficientes
Analisando a repercussão do caso na sociedade espanhola, é possível perceber que a primeira resposta se deu como um instinto de autodefesa. Diversas partes tentaram minimizar o novo caso de racismo, talvez na esperança de que ele não levasse a atitudes concretas ou mudanças estruturais, como aconteceu com todos os outros. A reação crítica em outras partes do mundo – incluindo do site The Athletic, que pertence ao New York Times – e a revolta gerada no Brasil fizeram as peças se mexerem.
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O jornal madrilenho Marca é um exemplo perfeito desse movimento. A capa de sua edição de segunda-feira (22) focou no título do Real Madrid na Euroliga de basquete e deu pouco destaque ao caso. No dia seguinte, dedicou todo o espaço a um texto pedindo atitudes enérgicas contra o racismo no futebol do país, sob o título “Não é suficiente não ser racista, é preciso ser antirracista”. O catalão As fez exatamente o mesmo: deu destaque ao basquete no dia 22 e, depois da repercussão, trouxe na capa o título “O mundo está com Vinicius” e uma chamada sobre as “condenações unânimes aos insultos racistas ao brasileiro”.

A súbita tomada de consciência chegou também às autoridades da Espanha. Dois dias depois dos crimes, a polícia nacional anunciou, com direito a vídeo de divulgação, a detenção de três suspeitos de ofender o jogador. Eles prestaram depoimento e acabaram liberados horas depois. Outras quatro pessoas foram presas pelo ato de ódio em que penduraram um boneco de Vinícius Jr sendo enforcado numa ponte de Madrid. Detalhe: isso aconteceu em janeiro deste ano.
Até LaLiga, que sempre se apoiou na justificativa de não ter poder para punir os clubes em casos de racismo, agora promete se mexer, principalmente agora que se vê ameaçada financeiramente. Em nota, a entidade declarou que buscará mais mudanças para “ser mais ágil e eficiente na luta contra a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância no esporte”. Ao longo dos últimos meses, ela se limitou a fazer denúncias ao Ministério Público, que tampouco tomou atitudes severas para coibir os crimes cometidos nas arquibancadas.

Diferentemente da liga, a Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) tomou medidas mais incisivas. Em sua primeira declaração, o presidente Luis Rubiales admitiu que existe “um problema de comportamento, educação e racismo” e pediu que “ignorem o comportamento irresponsável” de Javier Tebas. Na sequência, a RFEF suspendeu o responsável pelo VAR na partida e anulou o cartão vermelho dado ao atacante do Real Madrid. Também multou o Valencia em 45 mil euros (cerca de 240 mil reais) e decretou o fechamento do setor sul do Mestalla por cinco jogos.
Por fim, a Federação respondeu à carta enviada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) prometendo criar regras para punir os casos de racismo.
O longo caminho pela frente
Apesar desses movimentos darem a impressão de que há um avanço, ainda que muito tardio, no combate ao racismo no futebol espanhol, há sinais de que essa é uma história que está longe de se revolver. Um desses sinais é a infeliz campanha de LaLiga nas redes sociais, seguida pelos clubes a ela afiliados. Nos textos e ilustrações de “Juntos contra el racismo”, ela argumenta que os crimes são cometidos por uma pequena parte dos torcedores. Ou seja, até na hora de tratar o problema assume-se uma postura defensiva que tenta minimizá-lo.
As críticas feitas à Espanha e suas autoridades nos últimos dias não significam, é claro, que preconceito e discriminação não existam na sociedade e no futebol do Brasil. Recentemente, o Observatório da Discriminação Racial do Futebol divulgou um aumento de 40% nos registros de casos de racismo no futebol brasileiro em 2022, na comparação com 2021. Por sua vez, o coletivo Torcidas Canarinhos LGBTQ afirma que os episódios de homofobia cresceram em 76% no mesmo período. É preciso lembrar também que, em relação aos ataques contra Vinícius Jr., brasileiros estão na posição de acusadores e espanhóis, na de acusados, o que ajuda a explicar a diferença de postura.
Mas pode haver algo mais que isso. Depois de muito trabalho de conscientização, educação e divulgação por parte do movimento negro, hoje há uma consciência maior de que o Brasil é um país racista. Ainda temos muito a melhorar como sociedade, mas o debate sobre racismo estrutural tem se tornado mais frequente. Além disso, o mito da “democracia racial” já é mais questionado.

“A Espanha é provavelmente o país que inventou o racismo como conhecemos hoje”, disse o professor de história Antumi Toasijé à BBC Brasil. Toasijé é presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre), que faz parte do Ministério da Igualdade espanhol. Segundo ele, a disputa entre cristãos e muçulmanos pelo domínio da Península Ibérica deu origem a “uma narrativa racista que não existia até aquele momento no resto da Europa”.
Ainda assim, o professor acredita que o momento atual é de retrocesso. A partir da década de 1980, a Espanha estabeleceu políticas rígidas e agressivas para impedir a entrada de imigrantes africanos em seu território. E, por se sentir excluída da parte mais avançada da Europa, a sociedade espanhola criou uma necessidade de “provar sua branquitude”.
Ao contrário do que se pode pensar, o futebol espanhol dá aos árbitros a possibilidade de interromper partidas e prevê multas e banimento dos estádios de torcedores que cometam alguma infração. Já a legislação do país classifica os casos de racismo dentro da categoria de crimes de ódio, também passíveis de punição. O problema é que em nenhum dos dois âmbitos as denúncias costumam ir à frente.
Entender esse cenário, obviamente, não é sinônimo de diminuir a responsabilidade dos racistas nem das autoridades, clubes e entidades que se omitem. E em nada diminui a gravidade do que tem acontecido a Vinícius Jr., vítima recorrente de crimes que inaceitáveis.