Torcedor da Seleção Brasileira, com o rosto em perfil, usando uma peruca verde e amarela, com listras das mesmas cores pintadas no rosto

O amor da torcida pela Seleção Brasileira está acabando? Ou ele nunca existiu?

Por Luiz Vendramin Andreassa

Na noite anterior, eu havia sonhado com uma vitória da Inglaterra por 4 a 2. Não sei bem o porquê, mas achava aquele time muito forte. Talvez por isso, quando o Ronaldinho Gaúcho fez o gol de falta do meio de campo, eu me ajoelhei no chão, em frente à TV, e comecei a chorar enquanto comemorava a virada. Era a segunda vez que eu chorava pela Seleção Brasileira – a primeira havia sido quatro anos antes, na derrota para a França na final. Foi também a última: depois daquela Copa do Mundo de 2002, minha relação com a equipe nacional nunca mais foi a mesma.

Pode ser uma impressão criada pela memória afetiva, mas sinto que muitos dos torcedores seguiram caminho parecido. Aquele mundial disputado do outro lado do mundo, com seus jogos de madrugada, resultados improváveis e arbitragem questionável, foi o último em que houve um encantamento entre os brasileiros e a Seleção da estreia à final. Depois disso, algo desandou. Segundo a teoria que trago neste texto, o processo de erosão da torcida começou em 2006, quando sofremos uma frustração sem igual até então.

Não me refiro à frustração de ver uma equipe talentosa que cai de maneira improvável e até injusta, machucando fundo o torcedor, como foram as de 1950 e 1982. Mas à frustração de ter uma geração abençoada que não levou aquela disputa a sério e cuja queda só gerou raiva e indignação. Pelo menos, essa é a “narrativa oficial” que ficou após a Copa na Alemanha. Se nós, apaixonados por futebol, temos a mania de apontar falta de “raça” e de vontade como motivos para qualquer revés, o time do quadrado mágico apenas confirmou nossas suspeitas inatas.

Esse é o momento chave para entender a ruptura que se deu nos últimos anos. Não que tenha sido algo abrupto, como se fossemos fanáticos pela Seleção antes da derrota para a França em Frankfurt e depois virássemos as costas para ela. É, antes disso, o início de um processo que culminou na situação que temos hoje. E não se trata apenas da percepção daqueles que falam que não pintamos as ruas como antigamente e as famílias não se reúnem mais para ver os jogos: pesquisas do Datafolha corroboram essa afirmação. A Copa de 2006 é aquela que mais despertou o entusiasmo dos brasileiros neste século, quando mais da metade dos entrevistados disseram ter “grande interesse” no torneio e apenas 10% responderam “nenhum”. Depois dela, as opiniões começaram a mudar até praticamente se inverterem em 2022.

Não chega a surpreender que tenhamos chegado a 2023 sentindo uma ponta de inveja da relação visceral e enlouquecida dos argentinos com La Albiceleste. Seja no delírio após o título mundial no ano passado, seja na parceria melancólica das décadas sem títulos, eles parecem manter vivo o sentimento que, para nós, virou nostalgia.

Gráfico de linhas mostra o nível de interesse dos brasileiros pelas Copas do Mundo, segundo o Datafolha. Em 2006, 51% dos respondentes disseram ter grande interesse no torneio, mas, em 2022, 51% responderam "nenhum"
Pesquisas feitas pelo Datafolha apontam que os brasileiros estão cada vez mais desinteressados pela Copa do Mundo. O pico de empolgação aconteceu em 2006. (créditos: produção própria com dados do Datafolha)

A sucessão de narrativas

No Brasil, toda Copa do Mundo tem sua narrativa, principalmente aquelas que não vencemos. A narrativa é a forma mais aceita pela opinião pública para explicar o que aconteceu. Em caso de fracasso, é como o diagnóstico da doença que aponta para o remédio necessário. Se, em 2006, a exposição midiática excessiva, a falta de comprometimento e a bagunça tática foram as responsáveis pelo fracasso, a lógica dizia que devíamos seguir o caminho oposto. A CBF então contratou Dunga, a antítese do que tinha dado errado: sem experiência como treinador, mas capitão do tetra, sério, disciplinador e antipático.

De fato, não se notou qualquer sinal de desvio no comportamento dos jogadores brasileiros em 2010. Não faltou “raça” naquela Copa, assim como não faltou em 2014, em 2018 ou em 2022. Em todas essas ocasiões, porém, a Seleção caiu para um adversário europeu. Houve vontade, disposição e entrega; nem sempre houve qualidade técnica, eficiência, controle emocional ou variações táticas para evitar as eliminações. Ainda assim, 2006 deixou sua marca: sempre que o sonho do hexa desmorona, há quem questione o comprometimento de atletas que supostamente não ligam para seu país.

Adriano, Kaká e Ronaldo comemoram gol durante partida da Copa do Mundo de 2006
Mesmo com o chamado quadrado mágico, formado por Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Kaká e Adriano, a Seleção Brasileira decepcionou na Copa de 2006. (créditos: Fifa)

Esse sentimento é resultado da “esquizofrênica oscilação entre a euforia singularizante da nacionalidade e o fatalismo catastrófico”, como definiu o professor e ensaísta Idelber Avelar ao comentar o livro Veneno Remédio, de José Miguel Wisnik. Segundo essa teoria, não existe meio-termo na relação do brasileiro com a Seleção, apenas deslumbramento e negativismo. Vivemos entre dois polos: a síndrome do “apequenamento em decisões”, que deu origem ao complexo de vira-latas cunhado por Nelson Rodrigues, e a crença em nossa superioridade inquestionável no futebol de seleções.

O fatalismo catastrófico está ligado à percepção – muito forte antes do primeiro título mundial em 1958, mas viva também depois dele – de que somos inferiores no futebol e como país, principalmente em comparação aos europeus. Já a “euforia singularizante” é a ideia oposta, de que o Brasil é superior futebolísticamente porque nossos jogadores são naturalmente mais habilidosos, mais técnicos e mais capazes que os do resto do mundo. Quando vencemos uma Copa do Mundo, vencemos porque somos melhores, ponto. Isso ignora, como lembra Idelber Avelar, outros fatores que colaboraram para os títulos mais importantes, como as preparações cuidadosas e inovadoras que a Seleção fez para as Copas de 1958 e 1970, por exemplo.

Seleção Brasileira perfilada posando para foto antes de uma partida da Copa do Mundo de 1982
A Seleção de 1982 encantou o Brasil e o mundo, mas sua derrota para a Itália deixou marcas profundas no futebol nacional. (créditos: Fifa)

O polo do deslumbramento tornou-se dominante entre o primeiro e o quinto título mundiais. Várias gerações de brasileiros cresceram acreditando que, se temos problemas como país, ao menos sempre fomos os melhores no futebol. Apesar de algumas campanhas decepcionantes, como em 1966 e 1974, tínhamos a certeza de chegar a cada Copa do Mundo com pelo menos três jogadores extraclasse, capazes de decidir qualquer partida com seu talento. Foi assim em 2002, quando uma defesa sólida permitiu que Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho desfilassem no campo de ataque e nos levassem ao penta.

O grande problema da ideia de superioridade é que ela nos impede de analisar nossos fracassos com honestidade e franqueza. Não conseguimos enxergar e admitir a qualidade dos adversários que nos eliminam dos mundiais. Na “Tragédia de Sarriá”, por exemplo, acreditamos que a fantástica Seleção de Telê Santana caiu diante da Itália porque foi incapaz de ser pragmática e de recuar quando era preciso. Deixamos de lado o fato de que a equipe de Paolo Rossi era uma equipe “fortíssima na defesa e letal nos contra-ataques, talvez a melhor Itália de todos os tempos”, como argumenta Avelar.

A gente tem um histórico de acreditar que o Brasil só perde para si próprio. O Brasil, se fizesse tudo direitinho, ganharia todas as Copas. Somos completamente incapazes de analisar uma partida de futebol falando das duas equipes.

Idelber Avelar, em entrevista ao Futebocracia

Se acreditamos que somos os melhores e que ganhar a Copa do Mundo é uma obrigação, é inevitável nos revoltarmos toda vez que isso não acontece. Afinal, aqueles que possuem mais qualidade individual que os adversários só podem perder se forem incompetentes ou displicentes. Não à toa, a cada queda instalam-se discussões para apontar os motivos e, principalmente, os culpados disso. A frustração se transforma em raiva e a raiva se direciona a jogadores, treinador, CBF, imprensa – ou todos eles ao mesmo tempo.

Daí surgem as narrativas e as tentativas de romper com aquilo que supostamente não funcionou, fazendo tudo diferente no ciclo seguinte. O futebol vistoso das Seleções de 1982 e 1986 saiu de cena e o pragmatismo deu o tom em 1990 e 1994. A bagunça de 2006 foi compensada pelo autoritarismo de 2010. Os ultrapassados Felipão e Parreira, de 2014, deram lugar ao moderno e atualizado Tite – com uma breve segunda passagem de Dunga nesse meio tempo.

Leia também: As origens do amor dos haitianos pela Seleção e como ele foi usado na política

Uma das poucas exceções aconteceu justamente na Copa da Rússia para a do Catar, quando se estabeleceu quase um consenso de que Tite e sua comissão mereciam uma nova chance. Ainda assim, o sonho se desfez da mesma maneira: derrota para uma equipe europeia nas quartas de final. Atualmente, a ideia reinante é de que não existem treinadores brasileiros capazes de conquistar o hexa, e que a solução é contratar um estrangeiro. Carlo Ancelotti é a bola da vez.

Esse ciclo tresloucado de derrota-frustração-rompimento, que tem se repetido nas últimas duas décadas, acaba cansando o torcedor brasileiro e é parte da explicação para seu afastamento da Seleção.

Jogadores da Itália comemoram o título da Copa do Mundo de 1982 ainda no gramado. Ao centro, Paolo Rossi ergue a taça com largo sorriso no rosto
Ao lembrar da eliminação do Brasil para a Itália na Copa de 1982, pouco se fala da qualidade da equipe comandada por Paolo Rossi, que na foto ergue a taça. (créditos: Fifa)

Do Fla-Flu para a política

Outra hipótese interessante para explicar a deterioração do sentimento da torcida pela Seleção Brasileira, e que também se relaciona com o psicológico coletivo nacional, envolve a política. Em ensaio para a revista Piauí em março deste ano, Leonardo Villa-Forte desenhou esse argumento. Segundo ele, “nos últimos dez anos, o sujeito cordial deslocou parte da sua passionalidade do futebol pela política”.

Vale lembrar do que se trata o “homem cordial”. Ele é a imagem criada pelo sociólogo Sérgio Buarque de Holanda para explicar o comportamento e a mentalidade dos brasileiros. Não tem a ver com “cordialidade”, mas com um apego às coisas do coração (“cor”, em latim), a valorização das emoções e das relações pessoais, o desprezo pela formalidade e pela racionalidade.

Manifestantes se reúnem em torno da bandeira do Brasil, com o Congresso Nacional ao fundo
Segundo Leonardo Villa-Forte, brasileiros transferiram sua passionalidade do futebol para a política, adotando uma nova fonte de identidade e acolhimento. (créditos: Jonas Pereira/Agência Senado)

Pois bem. Para Leonardo, nossas emoções e afetos foram deslocados do futebol para a política. “De 2013 para cá, a cobertura em alguns veículos fundiu a política nacional com o espetáculo, a farsa, a performance. A política tornou-se um veículo de maior entretenimento do que o futebol (principalmente o de seleções)”. Além disso, a posição ideológica agora é uma fonte mais atrativa de identificação pessoal. Ela confere às pessoas “um lugar poderoso de acolhimento, pertencimento e autorreconhecimento, ainda mais determinante do que aqueles tradicionalmente encontrados nos estádios e bares em dia de jogo”, escreveu ele.

Penso também em outra possibilidade, não necessariamente oposta à anterior, de que torcer pela Seleção não satisfaz nosso desejo de confronto. Com a polarização política dos últimos anos, nós, brasileiros, nos acostumamos e nos afeiçoamos ao conflito – um traço que (equivocadamente) achávamos não fazer parte de nossa essência. A grande maioria de nós não tem contato cotidiano com argentinos ou alemães para tirar sarro deles em caso de vitória sobre suas seleções. Quando se trata do nosso time do coração, por outro lado, colhemos imediatamente os frutos morais das vitórias e das derrotas. Temos a quem zuar no trabalho, na escola, no grupo de WhatsApp.

Leia também: Atuação política e posicionamentos firmes: Richarlison se torna contraponto a Neymar na Seleção

As distâncias físicas e emocionais

É impossível falar sobre a relação entre a torcida e a Canarinho sem citar a questão do distanciamento. Primeiramente, existe a distância física: a Seleção Brasileira raramente joga em seu próprio país. No período de quatro anos, são apenas nove partidas das Eliminatórias em que isso acontece obrigatoriamente – um número ínfimo. Quando se trata de amistosos, eles acontecem quase sempre em outras partes do mundo, principalmente na Europa, por força de contratos de publicidade.

Além disso, quase todos os jogadores que foram às últimas Copas jogam no futebol europeu. Em 2002, 13 dos 23 convocados por Felipão atuavam em clubes do Brasil; esse número foi caindo gradualmente até chegar a apenas três entre os 26 escolhidos por Tite em 2022 – nenhum deles titular. Muitos dessa maioria que atua na Europa tiveram carreiras curtas em nosso país e não criaram laços afetivos com os torcedores, como é o caso de Gabriel Martinelli, Raphinha e Marquinhos. Sem a proximidade com os astros do espetáculo e sem vê-los defender seu time do coração, o brasileiro se sente alienado da equipe que deveria representá-lo.

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Usos duvidosos desse símbolo nacional agravam a situação. A Confederação Brasileira de Futebol está constantemente envolvida em casos de corrupção, muitos deles revelados nos últimos dez anos. Ricardo Teixeira, que comandou a entidade entre 1989 e 2012, fez da Seleção uma máquina de render dinheiro – um “balcão de negócios”, como se costuma dizer. Ao mesmo tempo, é acusado de ter recebido 32,3 milhões de reais em propina em contratos de transmissão de campeonatos, além de ter recebido dinheiro para votar, em 2010, a favor do Catar como sede da última Copa do Mundo, entre outros crimes.

Ricardo Teixeira, vestido com terno e gravata, mostra uma expressão séria. Ao fundo, acima de sua cabeça, uma placa diz "saída de emergência"
Presidente da CBF entre 1989 e 2012, Ricardo Teixeira se envolveu em diversos casos de corrupção e tornou-se símbolo do uso da entidade e da Seleção Brasileira para fazer dinheiro. (créditos: Marcello Casal Jr./ABr)

Teixeira não está sozinho. Seus dois sucessores, José Maria Marin (2012-2015) e Marco Polo Del Nero (2015-2017), também deixaram a CBF por envolvimento em corrupção e recebimento de propina. Na sequência, Rogério Caboclo caiu em meio a várias acusações de assédio sexual – apesar de, no fim de 2022, ter se livrado de duas delas. Esses casos mancharam a imagem da entidade e, por associação, a da Seleção Brasileira. Mesmo assim, os lucros não foram afetados. Em 2021, segundo ano da pandemia, o faturamento da CBF chegou a nada menos que 971 milhões de reais.

Para completar, a amarelinha caiu nas mãos da extrema-direita. Seu primeiro uso político, curiosamente, aconteceu pela esquerda governista que, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff, se opôs aos protestos contra a Copa do Mundo no Brasil. Depois disso, ela foi adotada pelos manifestantes que saíram às ruas entre 2015 e 2016 para pedir o impeachment da própria presidente. Conforme essa parcela da população se radicalizou, a camisa da Seleção passou a ser uma marca de apoiadores da ditadura militar e do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A atual diretoria da CBF, assim como alguns de seus patrocinadores, tem tentado dissociar o uniforme canarinho dessas ideologias. A Copa do Mundo do Catar, que excepcionalmente aconteceu depois da eleição presidencial no Brasil, apareceu como uma boa oportunidade para consolidar essa mudança. Por alguns dias, de fato, foi possível ver bandeiras nacionais e camisas amarelas sem pensar imediatamente em bolsonarismo ou movimentos reacionários. Porém, essa é uma tarefa que ainda demandará muito tempo e trabalho.

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A camisa da Seleção Brasileira e a bandeira nacional foram sequestrados pela extrema direita, que as usa como símbolos em manifestações e atos golpistas. (créditos: Joedson Alves/Agência Brasil)

Contudo, talvez nenhum desses distanciamentos tenha sido tão grave quanto o afetivo. Ao longo de sua história, a Seleção Brasileira tornou-se parte da nossa identidade coletiva. Uma identidade forjada a títulos mundiais – sucesso que compensa os problemas e atrasos históricos em nossa sociedade – mas também a um estilo de jogo. Tão importante quanto a supremacia nos números e troféus, nos víamos como representantes do futebol vistoso, dos dribles, da prática que une a arte ao sucesso.

Desde 2006, quando começou a sequência de cinco eliminações seguidas para europeus em Copas do Mundo, passou-se a questionar, além do comprometimento dos jogadores, a eficiência do estilo brasileiro. O ápice se deu com o 7 a 1, quando ficou claro, para a maioria dos analistas, cartolas e torcedores, nosso atraso tático em relação à Europa. A autoestima construída ao longo de décadas sofreu golpes dos quais ainda não se recuperou. Ainda tateamos um novo caminho, entre acessos de moralismo, complexo de inferioridade e reflexões superficiais.

O perfil József Bozsik tem tentado, no Twitter, melhorar o nível dessas discussões. Para ele, a crise é fruto de um desmonte do futebol brasileiro, tanto nos clubes quanto na Seleção. O vexame na Copa de 2014 é parte desse processo, mas as razões remontam a decisões anteriores, como a adoção dos pontos corridos no Brasileirão a partir de 2003. Independentemente do que se pense sobre os diferentes argumentos dessa análise, a reflexão sobre dogmas do nosso futebol é válida. Será que estamos mesmo tão atrasados taticamente? Se estamos, temos feito as melhores escolhas para resolver o problema?

A CBF escolheu Tite em 2016 e lhe deu uma nova chance em 2018 porque acreditava ser ele o técnico brasileiro mais alinhado às táticas modernas do Velho Continente. Com exceção de um breve período, entre seus dois primeiros anos, em que chegou a empolgar a torcida, a Seleção sob seu comando foi competitiva, mas não encantadora. Muito organizadas taticamente, suas equipes caíram por detalhes para Bélgica e Croácia. Em ambas as ocasiões, chegou a criar chances para vencer. A sensação é que faltou pouco – faltou algo mais.

Seria esse algo mais justamente a essência perdida do nosso futebol?

O amor que nunca existiu?

No fim de março deste ano, Luiz Felipe Castro, editor assistente das revistas Veja e Placar, assinou um artigo cuja linha-fina (subtítulo) já deixa clara sua visão sobre o tema. “Esqueça a corrupção da CBF, a politização da camisa ou a falta de craques; a verdade é que o torcedor do Brasil sempre foi chato, clubista e bairrista”.

Segundo o jornalista, a nostalgia em relação aos tempos em que a torcida estava em plena sintonia com a Seleção Brasileira é “saudade do que não vivemos”. Ele cita episódios em que o bairrismo, ou seja, a predileção afetiva pela região em que se vive em detrimento do sentimento nacional, se fez presente. Em um deles, na primeira partida em solo brasileiro depois do título na Copa de 1958, torcedores presentes ao Maracanã vaiaram Julinho Botelho, do Palmeiras, por este ser titular na ponta-direita no lugar de Garrincha, do Botafogo. Para efeito de comparação, os argentinos não fizeram mais do que exaltar Messi e seus companheiros no primeiro amistoso após o tricampeonato mundial, disputado no começo de 2023.

O caso mais representativo, porém, aconteceu em 1972. Naquele ano, o Brasil sediou a Taça Independência, criada para comemorar os 150 anos da declaração que separou nosso país de Portugal. Por contar com a participação de grandes seleções, como Argentina, União Soviética, Uruguai e França, o torneio ganhou o apelido de Mini-Copa. Na final, disputada no Maracanã, a Seleção venceu justamente os portugueses, com gol de Jairzinho nos últimos minutos. Entretanto, um estado não comemorou tanto quanto os outros. No Rio Grande do Sul, houve grande revolta porque Zagallo não convocou jogadores gaúchos e ainda deixou de fora o gremista Everaldo, lateral-esquerdo titular do time campeão dois anos antes.

A reação atingiu tal dimensão que, no mesmo ano de 1972, foi feito acordo para uma “partida de desagravo” entre a Seleção Gaúcha (um combinado de jogadores de Grêmio e Internacional) e a Seleção Brasileira. Se a intenção era restabelecer a paz, não deu certo. Colorados e gremistas se uniram para hostilizar o escrete nacional, com direito a vaias e bandeira nacional sendo queimada em pleno governo Médici, o mais repressivo da ditadura militar. Com Everaldo titular na lateral-esquerda, os gaúchos quase levaram a melhor: depois de liderarem o placar por três vezes, eles cederam o empate nos momentos finais. Em 2022, o excelente podcast “Um gol do Brasil quase estragou tudo” contou com detalhes a história por trás do “amistoso”.

Além do bairrismo e do clubismo, há uma exigência muito maior com as atuações da Seleção. Quantas vezes, ao jogar “em casa”, ela não foi vaiada simplesmente por não golear ou não jogar um futebol vistoso? Em entrevista à Revista Esquinas, o jornalista, pesquisador e professor Celso Unzelte usou uma metáfora bem-humorada para explicar esse sentimento. “A Seleção tem que ter qualidade, tem que ter espetáculo, tem que ter resultado. Sempre foi assim. Até faço uma brincadeira que a relação com a Seleção é só sexo, amor é com o clube”.

Vários torcedores brasileiros comemoram gol da Seleção em rua de Manaus. Sobre eles, paira uma bandeira do Brasil feita com fitas
Nas ruas de Manaus, torcedores brasileiros comemoram um dos gols da vitória da Seleção sobre a Coreia do Sul, na Copa do Mundo do Catar. Essa cena tem se tornado mais rara? (créditos: Antonio Pereira/Secom)

A relação é mesmo diferente nos dois casos. Tanto que a improvável união entre torcedores de Grêmio e Internacional, que marcou aquele amistoso, não acontece para apoiar a canarinho. Em 2008, um grupo de universitários criou o Movimento Verde e Amarelo  (MVA), com o objetivo de seguir a Seleção em partidas internacionais e compor canções de apoio. Talvez por não representar a diversidade da sociedade brasileira e não contar com membros das torcidas organizadas dos clubes (Luiz Felipe Castro os chama de “faria limers”, apesar de reconhecer o valor da iniciativa), o MVA está longe do patamar dos grupos de torcedores que apoiam as seleções de outros países da América Latina.

Por tudo isso, o jornalista, mesmo se dizendo um apaixonado pela nossa Seleção, lamenta que “nunca teremos relação sequer parecida com a dos argentinos, não só com sua seleção, mas com o futebol como um todo”. Seria isso sinal de que os brasileiros têm interesse somente na vitória, e não na disputa em si?

A lição que vem das mulheres

A Inglaterra não vence um torneio de grande expressão desde 1966, quando bateu a Alemanha na final da Copa do Mundo que ela própria sediou. Cinquenta e um anos depois, o estádio Wembley estava pronto para ser novamente o palco de um título histórico. Era a decisão da Eurocopa de 2020, disputada no ano seguinte por causa da pandemia, e a definição foi para os pênaltis após o empate por 1 a 1 com a Itália. A disputa até começou bem para os donos da casa, mas três cobranças desperdiçadas em sequência transformaram a expectativa em frustração.

Ao invés de transformar a derrota em trauma, os ingleses resolveram aproveitar a nova oportunidade que o destino lhes concedeu. Um ano depois, mais de 87 mil pessoas voltaram ao lendário estádio londrino para assistir a uma final europeia. Desta vez, as mulheres eram as protagonistas. Pela frente, assim como em 1966, estava a Alemanha. O final foi o mesmo: vitória do English Team com gol na prorrogação. O delírio da torcida mostrou que o futebol feminino conseguiu prover a alegria que o masculino não tinha conseguido proporcionar.

Os brasileiros já passaram perto de “substituir” a Seleção masculina pela feminina. Durante as Olimpíadas do Rio, em 2016, a equipe comandada por Marta dava show na primeira fase, enquanto o time de Neymar passava por dificuldades. Tornou-se famosa a foto de um garoto com a camisa verde-amarela em que o nome do atacante estava riscado, dando lugar ao de Marta. Outras pessoas copiaram a atitude, em meio à empolgação com a possibilidade de uma medalha de ouro. No fim das contas, a situação se inverteu – o time das mulheres caiu para a Suécia na semifinal e perdeu para o Canadá na disputa pelo bronze, enquanto o dos homens conquistou o título no Maracanã.

Foto de um menino de costas que mostra o nome de Neymar riscado de sua camisa da Seleção Brasileira. Logo embaixo, foi escrito o nome de Marta e desenhado um coração
Garoto que riscou o nome de Neymar e o substituiu pelo de Marta ficou famoso durante as Olimpíadas de 2016. Uma prova da popularidade da atacante brasileira, eleita por seis vezes a melhor do mundo. (créditos: reprodução)

É claro que o futebol feminino não existe para ser um substituto ou uma compensação, mas é possível repensar a relação entre a torcida e a representação nacional por meio dele. Sobre a Seleção Brasileira feminina não paira a cobrança inflexível que depositamos sobre o desempenho e os resultados da versão masculina. Ela vive estágios anteriores de desenvolvimento, apenas começando a colher os benefícios de um campeonato de clubes estruturado, maior interesse do público, novos canais de transmissão e o investimento de patrocinadores.

A Copa do Mundo feminina, que começa em 20 de julho de 2023, será a primeira transmitida em canal aberto no Brasil. A CazéTV, do streamer Casimiro Miguel, passará um jogo por dia. Ao todo, vinte empresas patrocinam a equipe. A nível de clubes, o Campeonato Brasileiro tem batido recordes consecutivamente. As duas partidas da final da edição passada, entre Internacional e Corinthians, levaram 36 mil e 41 mil pessoas aos estádios Beira-Rio e Neoquímica Arena, respectivamente.

Leia também: Como o futebol colaborou para a democracia no Brasil, segundo Roberto DaMatta

A Seleção já não conta mais com as estrelas que a levaram muito perto dos títulos mundial e olímpico no passado, como Formiga, Cristiane e Daniela Alves. Marta, eleita a melhor jogadora do mundo por seis vezes, sofre com o peso das lesões e da idade avançada. Por outro lado, o trabalho da treinadora Pia Sundhage, ainda que não tenha atendido a todas as expectativas, tem dado estrutura e confiança à equipe. Nas duas últimas partidas, perdeu a Finalíssima (disputa entre as campeãs da América do Sul e da Europa) para a Inglaterra nos pênaltis e venceu a Alemanha com autoridade em amistoso. Placares e desempenhos surpreendentes diante das finalistas da Eurocopa, duas das equipes mais fortes no cenário mundial, ainda mais por sofrer com inúmeros desfalques.

Um bom desempenho na Copa do Mundo, mesmo que não resulte em título, pode ser mais um impulso na ascensão da Seleção Brasileira feminina. E, quem sabe, nos faça lembrar dos tempos em que torcíamos pela masculina com mais paixão e menos cobrança, mais espontaneidade e menos paranoia de grandeza ou de apequenamento. Se um dia já houve amor verdadeiro entre o Brasil e o escrete nacional, ele está perdido em algum lugar, e pode ser encontrado.

Jogadoras de Seleção Brasileira perfiladas, todas com a mão no peito, enquanto ouvem o hino nacional antes do início de uma partida
Seleção Brasileira feminina não conta com as mesmas estrelas do passado, mas tem se mostrado uma equipe competitiva. Em julho de 2023, ela disputará a Copa do Mundo. (créditos: Rafael Ribeiro/CBF)

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